quarta-feira, 7 de setembro de 2011

António Nobre: O Teu Retrato

O TEU RETRATO

Deus fez a noite com o teu olhar,
... Deus fez as ondas com os teus cabelos;
Com a tua coragem fez castelos
Que pôs, como defesa, à beira-mar.

Com um sorriso teu, fez o luar
(Que é sorriso de noite, ao viandante)
E eu que andava pelo mundo, errante,
Já não ando perdido em alto-mar!

Do céu de Portugal fez a tua alma!
E ao ver-te sempre assim, tão pura e calma,
Da minha Noite, eu fiz a Claridade!

Ó meu anjo de luz e de esperança,
Será em ti afinal que descansa
O triste fim da minha mocidade!

in DESPEDIDAS

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Augusto dos Anjos



IDEALISMO

Falas de amor, e eu ouço tudo e calo!
O amor da Humanidade é uma mentira.
É. E é por isto que na minha lira
De amores fúteis poucas vezes falo.

O amor! Quando virei por fim a amá-lo?!
Quando, se o amor que a Humanidade inspira
É o amor do sibarita e da hetaíra,
De Messalina e de Sardanapalo?!

Pois é mister que, para o amor sagrado,
O mundo fique imaterializado
-- Alavanca desviada do seu fulcro --

E haja só amizade verdadeira
Duma caveira para outra caveira,
Do meu sepulcro para o teu sepulcro?!

O CAIXÃO FANTÁSTICO

Célere ia o caixão, e, nele, inclusas
Cinzas, caixas cranianas, cartilagens
Oriundas, como em sonho dos selvagens
De aberratórias abstrações abstrusas!

Nesse caixão iam talvez as Musas,
Talvez meu Pai! Hoffmannicas visagens
Enchiam o meu encéfalo de imagens
As mais contraditórias e confusas!

A energia monística do Mundo,
À meia noite penetrava fundo
No meu fenomenal cérebro cheio...

Era tarde! Fazia muito frio.
Nas ruas apenas o caixão sombrio
Ia continuando o seu passeio!

SONETO

Canta teu riso esplêndido sonata,
E há, no teu riso de anjos encantados,
Como que um doce tilintar de prata
E a vibração de mil cristais quebrados.

Bendito o riso assim que se desata
- Citara suave dos apaixonados,
Sonorizando os sonhos já passados,
Cantando sempre em trínula volata!

Aurora ideal dos dias meus risonhos,
Quando, úmido de beijos em ressábios
Teu riso esponta, despertando sonhos...

Ah! Num delíquio de ventura louca,
Vai-se minh'alma toda nos teus beijos,
Ri-se o meu coração na tua boca!

Poemas de Eucanãa Ferraz



MORTE NO MAR

a T. S. Elliot

Lembro do rapaz que vi morrer na praia.
Os olhos abertos
- uma luz tão fria -
conchas espantadas que eram.
As mãos nada diziam de
anêmonas e navios.
Eu era um menino e
o azul verde da água.
Alto e belo, o afogado,
um capitão.

CONTO

para Eugénio de Andrade

Ainda não era menino
ou menina.
Tudo o que sabia
era o nome das cores.
Tudo o que sentia era
sede e fome.
Mas houve o verão em que
os barcos não regressaram. Foi quando,
apontando a linha do horizonte, a mãe
disse ao seu ouvido:
- és um homem.

MAR MÍNIMO

Grandes são os marinheiros e os poetas
que fazem caber em seus versos
a glória de horizontes
inventados ou vividos e que,
em grandíloquo e corrente estilo,
erguem cidades magníficas,
domam línguas, contam-nos pélagos e obeliscos.
Mas que fazer da escama
que sobrasse após os mares,
agarrada à roupa mais que
Veneza ou Viena à memória?
Escutai: é nessa minúscula opalina
que muitos sabem o poema
- mais duas ou três palavras
e o martelo certo de fazê-lo.
Rotas magníficas, não mais,
nem quantas as maravilhas
(e cessem com elas os iluminados que contam
de terras por si mesmas lavradias).
O mar pode ser isto: o ar
dentro da concha. Dentro:
o sargaço, o barco, o sargo,
a enseada. Onde poderá ser mais belo
e largo? A onda bravia
sobre um grão de mostarda.


in Martelo

LUGAREJO
O trem muge o longe.
Os vagões levam toneladas de horas
e astros enferrujados.

Bicho de ferro,
atravessando a facão o lombo do dia,
enchendo de metálica melodia
a vida homens dali.



18.05.1961

Nasci num lugar pobre,
onde o hospital era longe,
onde era longe a estrada
e os anjos não conheciam.

Nasci mês de maio,
azul de tardes macias,
de pai José, mãe Maria.

Batizaram-me: Terra Prometida.
Terra pobre, onde a felicidade
passa longe, mas daqui eu a vejo
e todo o meu corpo brilha.



GINÁSIO

Dias de muito sol e biscoitos de vento,
Colubiazol e aparelho nos dentes,
amigdalite e bagunça nos ônibus.



LIÇÃO DE CITOLOGIA

A célula
é a concha
dentro da pérola.



INICIAÇÃO

Conheço o primeiro livro de poemas:
Eu,
de Augusto dos Anjos.

Meu pai o tem
entre tratados de odontologia,
sem capa, velho,
enferrujado.

Livro misteriosíssimo,
no qual a morte é o superlativo
síntese de tudo,
absoluta como minha preguiça
de ir ao dicionário decifrar vocábulos.



PASSEIO

Na entrada do cinema
o drops pode ser misto ou de hortelã.
O misto tem gosto de frutas,
o de hortelã de hortelã.

As pessoas são muitas pessoas.

Dentro do cinema,
quanto tudo é escuro,
são todos anônimos
e mesmo em inúmeros,
assim como são,
ficam uma só pessoa,
nos escuro,
como se não fosse ninguém.



QUANDO EU MORRER

Pai,
quando eu morrer,
ficarei rosa
como uma menina
(você não deve ralhar
ou querer que eu minta
porque tudo será exato
sem mesmo carecer de ensaio).

Quando eu morrer sou tranqüilo
como um príncipe
que beijasse a boca do nada
(você vai achar bonito
esse quadro de tintas longínquas).

Pensarão que sou uma menina,
um barco,
um pombo.

Todo o meu doce virá à tona.

Veja pai,
sou um mineral,
intacto e sem passado.

ASSIM

Da solidão nasce o silêncio.

Posso vê-lo
entre nós.

Estáticos,
estamos assim
desde que, calados, assistimos dormir
o últmo pedido.

Canções e braços
mudaram-se ao país das pedras
e a tua presença é uma casa
sem portas.

Silêncio.

As águas
não chegam até à praia.

in Livro Primeiro

José Duro - 1873-1899




Numa tarde de Verão dos meus doze anos, enquanto aguardava com estóica resignação que as três horas de digestão fossem volvidas para poder ir para o rio, aproximei-me da velha estante de cerejeira onde pilhas de livros se acumulavam em montes, desordenadas. Lá fora, por entre o silêncio quente de uma tarde de fim de Julho na Serra do Montemuro, só se ouvia o cantar das cigarras e o murmurar do rio caindo em pequenas cascatas do açude e escoando-se em correntes malandras até ao longe, ao São Macário com as suas aldeias de xistos e os clarões vermelhos nas noites de incêndios da cor da madeira da estante. Por detrás dos vidros, para além das cortinas vermelhas, chamou-me a atenção um pequeno livro, de capa amarelada e bastantes folhas dobradas. O papel, áspero e rugoso desprendia uma ligeira poalha que se elevava por entre o pontilhado de raios de luz que os estores fechados deixavam passar. O título era conciso como breve foi a paixão que me assaltou pelo livro. Chamava-se Fel e o escritor era José Duro.
Nessa tarde levei-o para o rio, não fui para a poço da dorna, com a sua pequena praia, por receio das brincadeiras dos outros miúdos e com medo de danificar o meu novo tesouro. Fui para o açude, um pouco mais abaixo, sentei-me sobre as rochas mornas, sob inclinados amieiros que no Inverno se cobriam de água até às copas, nadei solitário e li, li muito e muito depressa, como quem, febril, bate os dentes a velocidade inaudita, e perdi-me em sonhos onde velhas gravuras de Gustave Doré de uma velha edição de Le Corbeau de Edgar A. Poe passavam fugazes na memória sobrepondo-se com o rendilhado verde das ogivas de amieiros por cima de mim. Foi um momento mágico que nunca mais esqueci.
Voltei para casa e remexi a estante. Lá no fundo, meio esmagadas sob uma pilha de vidas de santos, repousavam as oprimidas Flores. Li-o nessa noite, de calções do pijama sobre os lençóis de linho, ouvindo o cantar dos grilos e o rumor do Paiva. Era bom, sem dúvida, mas nada se podia comparar à impressão causada por Fel no meu espírito.
Os anos foram passando até que, já com os meus dezoito anos, num depósito de livros em várias mãos que muito dificilmente passaria por ser um alfarrabista, descobri, entre livros dos cinco e fotonovelas, um livro de Dispersos de José Duro. Gostei, mas, mais uma vez, nada se comparava à poalha que se desprendera das folhas naquela tarde de Verão da minha infância.
Durante anos o mantive e o li, de tempos a tempos, algumas vezes apenas um poema, outras vários de seguida. Ainda hoje o leio e continuo a amar a sombria suavidade de um verbo consciente de uma morte próxima. Sou piegas? Provavelmente sim! Contudo ao longo dos anos sempre me acompanhou e sempre me revelou novas maneiras de sublimar em verso a lúcida dor do viver no morrer.



Em Busca


Ponho os olhos em mim, como se olhasse um estranho,
E choro de me ver tão outro, tão mudado…
Sem desvendar a causa, o íntimo cuidado
Que sofro do meu mal — o mal de que provenho.

Já não sou aquele Eu do tempo que é passado,
Pastor das ilusões perdi o meu rebanho,
Não sei do meu amor, saúde não na tenho,
E a vida sem saúde é um sofrer dobrado.

A minh’alma rasgou-ma o trágico Desgosto
Nas silvas do abandono, à hora do sol-posto,
Quando o azul começa a diluir-se em astros…

E à beira do caminho, até lá muito longe,
Como um mendigo só, como um sombrio monge,
Anda o meu coração em busca dos seus rastros…


Alvíssima


(Oração)

Como a Noite, Senhor,é linda
Com seus cabelos de luar…
Não chores mais, Lua bemvinda
Que me fazes também chorar…

Sorrisos do luar d’uma Caveira oca,
Sorrisos do luar enfeitiçando os brejos
Sorrisos do luar a angelizar a boca,
Sorrisos do luar onde escondi meus beijos…

Orações do luar dos lábios de nós ambos,
Orações do luar que os astros não rezaram,
Orações do luar a consagrar os tambos,
Orações do luar, das almas que noivaram.

Cabelos do luar, aveludados, frios,
Cabelos do luar em tranças latescentes;
Cabelos do luar — alvíssimas serpentes,
Cabelos do luar banhando-se nos rios…

Aromas do luar em revoadas francas,
Aromas do luar, a perfumar o céu…
Aromas do luar, sonâmbulos ao léu,
Aromas do luar, por noites todas brancas…

Brancuras do luar dispersas pelos montes…
Brancuras do luar — finos lençois de gelo…
Brancuras do luar, olhai o sete estrelo,
Brancuras do luar, a namorar as fontes…

Veludos do luar tecidos pela lua,
Veludos do luar, de lírios e de rosas…
Veludos do luar, ó vestes preciosas
Veludos do luar vestindo a noite nua…

Trémulos de luar — litanias peregrinas,
Trémulos de luar — ó harmonias cérulas,
Trémulos de luar, nas bocas aspérulas
Trémulos de luar, e lábios das boninas…

Tristezas do luar caindo-nos no peito,
Tristezas do luar, como um dobrar profundo…
Tristezas do luar anestisiando o Mundo,
Tristezas do luar, em lágrimas desfeito…

Lágrimas do luar da Lua aventureira,
Lágrimas do luar, da débil flor dos linhos…
Lágrimas do luar da mágua derradeira,
Lágrimas do luar, de moços e velhimhos…

Saudades do luar, na rama dos ciprestes,
Saudades do luar, há mochos a cantar…
Saudades do luar, são almas a chorar…
Saudades do luar, as podridões agrestes…

Velhinhos corações a verter sangue e máguas,
Velhinhos corações de mocidade negras,
Velhinhos corações — doridas toutinegras,
Velhinhos corações aos tombos pelas frágoas.

Vamos todos pedir à Lua sacrossanta
Na aspiração do Amor, na comunhão do Bem
Que o seu bendito olhar, o seu olhar de Santa,
Nos abençõe agora e para sempre amén!


in Antologia de Poetas Alentejanos



Doente

Que negro mal o meu! estou cada vez mais rouco!
Fogem de mim com asco as virgens d'olhar cálido...
E os velhos, quando passo, vendo-me tão pálido,
Comentam entre si: - coitado, está por pouco!...

Por isso tenho ódio a quem tiver saúde,
Por isso tenho raiva a quem viver ditoso,
E, odiando toda a gente, eu amo o tuberculoso.
E só estou contente ouvindo um alaúde.

Cada vez que me estudo encontro-me diferente,
Quando olham para mim é certo que estremeço;
E vai, pensando bem, sou, como toda a gente,
O contrário talvez daquilo que pareço...

Espírito irrequieto, fantasia ardente,
Adoro como Poe as doidas criações,
E se não bebo absinto é porque estou doente,
Que eu tenho como ele horror às multidões.

E amando doudamente as formas incompletas
Que às vezes não consigo, enfim, realizar,
Eu sinto-me banal ao pé dos mais poetas,
E, achando-me incapaz, deixo de trabalhar...

São filhos do meu tédio e duma dor qualquer
Meus sonhos de neurose horrivelmente histéricos
Como as larvas ruins dos corpos cadavéricos,
Ou como a aspiração de Charles Baudelaire.

Apraz-me o simbolismo ingénito das coisas...
E aos lábios da Mulher, a desfazer-se em beijos,
Prefiro os lábios maus das negregadas loisas,
Abrindo num ancelar de mórbidos desejos.

E é vão que medito e é em vão que sonho:
Meu coração morreu, minha alma é quase morta...
Já sinto emurchecer no crânio a flor do Sonho,
E oiço a Morte bater, sinistra, à minha porta...

Estou farto de sofrer, o sofrimento cansa,
E, por maior desgraça e por maior tormento,
Chego a julgar que tenho - estúpida lembrança -
Uma alma de poeta e um pouco de talento!

A doença que me mata é moral e física!
De que me serve a mim agora ter esperanças,
Se eu não posso beijar as trémulas crianças,
Porque ao meu lábio aflui o tóxico da tísica?

E morro assim tão novo! Ainda não há um mês,
Perguntei ao Doutor: - Então?...- Hei-de curá-lo...
Porém já não me importo, é bom morrer, deixá-lo!
Que morrer - é dormir... dormir... sonhar talvez...

Por isso irei sonhar debaixo dum cipreste
Alheio à sedução dos ideais perversos...
O poeta nunca morre embora seja agreste
A sua aspiração e tristes os seus versos!

A Caveira

Encontrei-a uma vez, a lívida caveira,
A rir, sinistramente, em doidas gargalhadas...
E pensei, nesse instante, ó almas torturadas!
Que ela seria em breve a minha companheira.

Depois vi, por meu mal, naquela ossada nua,
Que a Morte descarnara, em ânsias, brutalmente,
A imagem do meu ser, gelada e inconsciente,
Bebendo a luz do sol e as lágrimas da lua...

E tive ainda mais ódio a este viver tristonho,
Que arrasto, sem te ver, eu que por ti vivia,
Ó alma da minha alma e sonho do meu sonho!

Entretanto, começava o dia a esmorecer...
E eu fui-me perguntar à Sombra, que descia,
Se acaso não seriam horas de eu morrer!



O corvo

Quando o meu corvo, trêmulo, doente,
- Como quem sofre as minhas agonias -
Naquela noite veio, amargamente,
Dizer-me, soluçando, que morrias,

Percebi-lhe no olhar as nostalgias
da noite negra, sem luar, fremente,
Aonde as suas asas luzidias
Tomaram cor misteriosamente...

E à luz medrosa do candeeiro exausto,
Bebendo a minha dor num longo hausto
Mais triste que o soluço das nortadas,

Analisei a mágua de nós dois
Para ver qual sofria mais... depois...
Céus! Desatei, chorando, às gargalhadas!

Noivado Estranho

Quisera amar-te muito, ó Gémea do luar,
Num sonho excepcional, só de carícias feito,
Abendiçoar o céu na luz do teu olhar,
E a alma adormecer na curva do teu peito;

Quisera amar-te sempre, ó Doce como arminho
E casta como a pomba em seus arrulhos doces...
E, em troca deste amor, viver do teu carinho,
Que eu não vivia, não, Mulher, se tu não fosses!

Passar a vida inteira a ver-me nos teus olhos,
Apenas ter ventura em vez de ter abrolhos,
Beber o teu sorriso, e as máguas esquecê-las...

E quando a morte viesse e nos levasse a ambos
Realizarmos então os desejados tambos,
Na Igreja do Além... em meio das estrelas.

in Fel

Poemas de Fernando Guilherme Azevedo

Sou um estrangeiro que passa por mim.
Alheio, disperso.
A transfiguração da idade
Aclara-me, mas névoa.)
A imprecisão atómica do mundo
Sempre nos conduz a uma inabitação
Das coisas que nos entram pelo olhar
Como chama trémula a morrer na calçada.
As pedras.
As imemoriais pedras dos monumentos
Gritam, chamam por nós.
Como se o último, verdadeiro segredo
Fosse retornarmos às estátuas que fomos,
Divindades latentes nos passos que cruzamos
Nos passos uns dos outros.
Porque os caminhos são eternos,
E as fontes sempre jorrarão,
Como crianças leitosas a alcançar-nos
Uma outra forma do mundo
Que finalmente proporcionará repouso,
Estrelas sonolentas no húmus dos olhos.

_____________


Ser solitário é um estado de alma
Que perpetua lençois brancos,
O branco da castidade.
O homem solitário tem no seu olhar
A virgindade com que adora os outros homens,
Com que beija impoluto a Mulher-Mãe.
Ser solitário não é necessáriamente sofrimento,
Porque há encontro dentro de nós,
Na mais íntima construção da fortaleza
Que vence o tremor de flores delicadas
Que, qual verme, por vezes nos assalta de incredulidade.
Ser solitário é sobretudo estar predisposto,
Preparado para não mais o ser,
E de novo voltar a si próprio e à auto-companhia
Quando os ventos dos rostos e dos mundos
Devolvem a acidez onde só a ermida dela nos protege...

_________________________

O último telejornal
Germina opiniões especializadíssimas!
Todos comentam as últimas informações
Com uma sabedoria
Que quase são ministros filósofos.
Relembram-se treinos militares
E emborca-se imperiais.
Eu, querendo sossego,
Não mais que verdadeiro, pacífico sossego,
Oiço tudo isto
Como alguém que vem de muito longe.
Tento a todo o custo não escutar,
Mas eles teimam, eles são sábios
Assim, troco forçosamente
As memórias daquela que amo
por uma quase-morte do sentir
Genuinamente.
Oh, tenho tanta pena...
Que esta gente
não se evapore ou emigre,
Ou prepare a cama
Para nunca mais acordar!

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Mendes de Carvalho: Cantiga dos ais

Cantiga dos ais

Os ais de todos os dias
os ais de todas as noites
ais do fado e do folclore
o ai do ó ai ó linda

Os ais que vêm do peito
ai pobre dele coitado
que tão cedo se finou

Os ais que vêm da alma
ais d'amor e de comédia
ai pobre da rapariga
que se deixou enganar
ai a dor daquela mãe

Os ais que vêm do sexo
os ais do prazer na cama
os ais da pobre senhora
agarrada ao travesseiro
ai que saudades saudades
os ais tão cheios de luto
da viúva inconsolável

Ai pobre daquele velhinho
ai que saudades menina
ai a velhice é tão triste

Os ais do rico e do pobre
ai o espinho da rosa
os ais do António Nobre
ais do peito e da poesia
e os ais doutras coisas mais
ai a dor que tenho aqui
ai o gajo também é
ai a vida que tu levas
ai tu não faças asneiras
ai mulher és o demónio
ai que terrível tragédia
ai a culpa é do António

Ai os ais de tanta gente
ai que já é dia oito
ai o que vai ser de nós

E os ais dos liriquistas
a chorar compreensão

Ai que vontade de rir
E os ais do D. Dinis
ai Deus e u é

Triste de quem der um ai
sem achar eco em ninguém

Os ais da vida e da morte
ai os ais deste país

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

A poesia de Gaspara Stampa VI

(continuação)

XVI

Si come provo ognor novi diletti,
ne l'amor mio, e gioie non usate,
e veggio in quell'angelica beltate
sempre novi miracoli ed effetti,
così vorrei aver concetti e detti
e parole a tant'opra appropriate,
sì che fosser da me scritte e cantate,
e fatte cónte a mille alti intelletti.
Et udissero l'altre che verranno
con quanta invidia lor sia gita altera
de l'amoroso mio felice danno;
e vedesse anche la mia gloria vera
quanta i begli occhi suoi luce e forza hanno
di far beata altrui, benché si pèra.


XVI

Assim como sinto sempre novos prazeres,
nem o amor meu, e alegrias não usadas,
e percebo naquela angélica beleza
sempre novos milagres e efeitos,
assim queria ter conceitos e ditos
e palavras a tant'obra apropriados,
assim que fossem por mim escritos e cantados,
e prestadas contas a mil altos intelectos.
E ouvissem as outras que virão
com quanta inveja quanto o seu caminho contrário
do amoroso meu feliz dano;
e visse ainda a minha glória vera
quanto os belos olhos seus luz e força têem
de fazer feliz outras, ainda que morra.



XVII

Io non v'invidio punto, angeli santi,
le vostre tante glorie e tanti beni,
e que' disir di ciò che braman pieni,
stando voi sempre a l'alto Sire avanti;
perché i diletti miei son tali e tanti,
che non posson capire in cor terreni,
mentr'ho davanti i lumi alti e sereni,
di cui conven che sempre scriva e canti.
E come in ciel gran refrigerio e vita
dal volto Suo solete voi fruire,
tal io qua giù da la beltà infinita.
In questo sol vincete il mio gioire,
che la vostra è eterna e stabilita,
e la mia gloria può tosto finire.


XVII

Não vos invejo em nada, anjos santos,
as vossas tantas glórias e tantos bens,
e aquele desejo daquilo que bramam cheios,
estando vós sempre ao alto Senhor diante;
porque os dilectos meus são tais e tantos,
que não podem caber em corações terrenos,
enquanto tenho diante os lumes altos e serenos,
de que convém que sempre escreva e cante.
E como no céu grande refrigério e vida
do vulto Seu costumais vós fruir,
como eu aqui em baixo da beleza infinita.
Só nisto venceis o meu gozar,
que a vossa é eterna e estabelecida,
e a minha glória pode breve findar.



XVIII

Quando i' veggio apparir il mio bel raggio,
parmi veder il sol, quand'esce fòra;
quando fa meco poi dolce dimora,
assembra il sol che faccia suo viaggio.
E tanta nel cor gioia e vigor aggio,
tanta ne mostro nel sembiante allora,
quanto l'erba, che pinge il sol ancora
a mezzo giorno nel più vago maggio.
Quando poi parte il mio sol finalmente,
parmi l'altro veder, che scolorita
lasci la terra andando in occidente.
Ma l'altro torna, e rende luce e vita;
e del mio chiaro e lucido oriente
è 'l tornar dubbio e certa la partita.


XVIII

Quando vejo surgir o meu belo raio,
parece-me ver o sol, quando surge;
quando faz em mim depois doce demora,
assemelha ao sol que faça a sua viagem.
E tanta no coração alegria e vigor tenho,
tanta mostro no semblante então,
quanta a erva, que tinge o sol ainda
ao meio dia do mais incerto maio.
Quando pois parte o meu sol finalmente,
parece-me o outro ver, que descolorido
deixe a terra andando para ocidente.
Mas o outro volta, e traz luz e vida;
e do meu claro e lúcido oriente
é o tornar dúbio e certa a partida.



XIX

Come chi mira in ciel fisso le stelle,
sempre qualcuna nova ve ne scorge,
che, non più vista pria, fra tanti sorge
chiari lumi del mondo, alme fiamelle;
mirando fisso l'alte doti e belle
vostre, signor, di qualcuna s'accorge
l'occhio mio nova, che materia porge,
onde di lei si scriva e si favelle.
Ma, sì come non può gli occhi del cielo
tutti, perch'occhio vegga, raccontare
lingua mortal e chiusa in uman velo,
io posso ben i vostri onor mirare,
ma la più parti d'essi ascondo e celo,
perché la lingua a l'opra non è pare.


XIX

Como quem mira no céu fixo as estrelas,
sempre alguma nova aí descobre,
que, não antes vista, entre tantas surge
claros lumes do mundo, almas ardentes;
mirando fixo as altas doutas e belas
vossas, senhor, de alguma se apercebe
o olhar meu de nova, que matéria alonga,
onde de ela se escreva e se fale.
Ma, assim como não pode os olhos do céu
todos, que olho veja, contar
língua mortal e fechada em humano véu,
eu posso bem as vostras honras mirar,
mas a maior parte desses escondo e oculto,
porque a língua à obra não é par.



(continua)