quarta-feira, 7 de setembro de 2011

António Nobre: O Teu Retrato

O TEU RETRATO

Deus fez a noite com o teu olhar,
... Deus fez as ondas com os teus cabelos;
Com a tua coragem fez castelos
Que pôs, como defesa, à beira-mar.

Com um sorriso teu, fez o luar
(Que é sorriso de noite, ao viandante)
E eu que andava pelo mundo, errante,
Já não ando perdido em alto-mar!

Do céu de Portugal fez a tua alma!
E ao ver-te sempre assim, tão pura e calma,
Da minha Noite, eu fiz a Claridade!

Ó meu anjo de luz e de esperança,
Será em ti afinal que descansa
O triste fim da minha mocidade!

in DESPEDIDAS

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Augusto dos Anjos



IDEALISMO

Falas de amor, e eu ouço tudo e calo!
O amor da Humanidade é uma mentira.
É. E é por isto que na minha lira
De amores fúteis poucas vezes falo.

O amor! Quando virei por fim a amá-lo?!
Quando, se o amor que a Humanidade inspira
É o amor do sibarita e da hetaíra,
De Messalina e de Sardanapalo?!

Pois é mister que, para o amor sagrado,
O mundo fique imaterializado
-- Alavanca desviada do seu fulcro --

E haja só amizade verdadeira
Duma caveira para outra caveira,
Do meu sepulcro para o teu sepulcro?!

O CAIXÃO FANTÁSTICO

Célere ia o caixão, e, nele, inclusas
Cinzas, caixas cranianas, cartilagens
Oriundas, como em sonho dos selvagens
De aberratórias abstrações abstrusas!

Nesse caixão iam talvez as Musas,
Talvez meu Pai! Hoffmannicas visagens
Enchiam o meu encéfalo de imagens
As mais contraditórias e confusas!

A energia monística do Mundo,
À meia noite penetrava fundo
No meu fenomenal cérebro cheio...

Era tarde! Fazia muito frio.
Nas ruas apenas o caixão sombrio
Ia continuando o seu passeio!

SONETO

Canta teu riso esplêndido sonata,
E há, no teu riso de anjos encantados,
Como que um doce tilintar de prata
E a vibração de mil cristais quebrados.

Bendito o riso assim que se desata
- Citara suave dos apaixonados,
Sonorizando os sonhos já passados,
Cantando sempre em trínula volata!

Aurora ideal dos dias meus risonhos,
Quando, úmido de beijos em ressábios
Teu riso esponta, despertando sonhos...

Ah! Num delíquio de ventura louca,
Vai-se minh'alma toda nos teus beijos,
Ri-se o meu coração na tua boca!

Poemas de Eucanãa Ferraz



MORTE NO MAR

a T. S. Elliot

Lembro do rapaz que vi morrer na praia.
Os olhos abertos
- uma luz tão fria -
conchas espantadas que eram.
As mãos nada diziam de
anêmonas e navios.
Eu era um menino e
o azul verde da água.
Alto e belo, o afogado,
um capitão.

CONTO

para Eugénio de Andrade

Ainda não era menino
ou menina.
Tudo o que sabia
era o nome das cores.
Tudo o que sentia era
sede e fome.
Mas houve o verão em que
os barcos não regressaram. Foi quando,
apontando a linha do horizonte, a mãe
disse ao seu ouvido:
- és um homem.

MAR MÍNIMO

Grandes são os marinheiros e os poetas
que fazem caber em seus versos
a glória de horizontes
inventados ou vividos e que,
em grandíloquo e corrente estilo,
erguem cidades magníficas,
domam línguas, contam-nos pélagos e obeliscos.
Mas que fazer da escama
que sobrasse após os mares,
agarrada à roupa mais que
Veneza ou Viena à memória?
Escutai: é nessa minúscula opalina
que muitos sabem o poema
- mais duas ou três palavras
e o martelo certo de fazê-lo.
Rotas magníficas, não mais,
nem quantas as maravilhas
(e cessem com elas os iluminados que contam
de terras por si mesmas lavradias).
O mar pode ser isto: o ar
dentro da concha. Dentro:
o sargaço, o barco, o sargo,
a enseada. Onde poderá ser mais belo
e largo? A onda bravia
sobre um grão de mostarda.


in Martelo

LUGAREJO
O trem muge o longe.
Os vagões levam toneladas de horas
e astros enferrujados.

Bicho de ferro,
atravessando a facão o lombo do dia,
enchendo de metálica melodia
a vida homens dali.



18.05.1961

Nasci num lugar pobre,
onde o hospital era longe,
onde era longe a estrada
e os anjos não conheciam.

Nasci mês de maio,
azul de tardes macias,
de pai José, mãe Maria.

Batizaram-me: Terra Prometida.
Terra pobre, onde a felicidade
passa longe, mas daqui eu a vejo
e todo o meu corpo brilha.



GINÁSIO

Dias de muito sol e biscoitos de vento,
Colubiazol e aparelho nos dentes,
amigdalite e bagunça nos ônibus.



LIÇÃO DE CITOLOGIA

A célula
é a concha
dentro da pérola.



INICIAÇÃO

Conheço o primeiro livro de poemas:
Eu,
de Augusto dos Anjos.

Meu pai o tem
entre tratados de odontologia,
sem capa, velho,
enferrujado.

Livro misteriosíssimo,
no qual a morte é o superlativo
síntese de tudo,
absoluta como minha preguiça
de ir ao dicionário decifrar vocábulos.



PASSEIO

Na entrada do cinema
o drops pode ser misto ou de hortelã.
O misto tem gosto de frutas,
o de hortelã de hortelã.

As pessoas são muitas pessoas.

Dentro do cinema,
quanto tudo é escuro,
são todos anônimos
e mesmo em inúmeros,
assim como são,
ficam uma só pessoa,
nos escuro,
como se não fosse ninguém.



QUANDO EU MORRER

Pai,
quando eu morrer,
ficarei rosa
como uma menina
(você não deve ralhar
ou querer que eu minta
porque tudo será exato
sem mesmo carecer de ensaio).

Quando eu morrer sou tranqüilo
como um príncipe
que beijasse a boca do nada
(você vai achar bonito
esse quadro de tintas longínquas).

Pensarão que sou uma menina,
um barco,
um pombo.

Todo o meu doce virá à tona.

Veja pai,
sou um mineral,
intacto e sem passado.

ASSIM

Da solidão nasce o silêncio.

Posso vê-lo
entre nós.

Estáticos,
estamos assim
desde que, calados, assistimos dormir
o últmo pedido.

Canções e braços
mudaram-se ao país das pedras
e a tua presença é uma casa
sem portas.

Silêncio.

As águas
não chegam até à praia.

in Livro Primeiro

José Duro - 1873-1899




Numa tarde de Verão dos meus doze anos, enquanto aguardava com estóica resignação que as três horas de digestão fossem volvidas para poder ir para o rio, aproximei-me da velha estante de cerejeira onde pilhas de livros se acumulavam em montes, desordenadas. Lá fora, por entre o silêncio quente de uma tarde de fim de Julho na Serra do Montemuro, só se ouvia o cantar das cigarras e o murmurar do rio caindo em pequenas cascatas do açude e escoando-se em correntes malandras até ao longe, ao São Macário com as suas aldeias de xistos e os clarões vermelhos nas noites de incêndios da cor da madeira da estante. Por detrás dos vidros, para além das cortinas vermelhas, chamou-me a atenção um pequeno livro, de capa amarelada e bastantes folhas dobradas. O papel, áspero e rugoso desprendia uma ligeira poalha que se elevava por entre o pontilhado de raios de luz que os estores fechados deixavam passar. O título era conciso como breve foi a paixão que me assaltou pelo livro. Chamava-se Fel e o escritor era José Duro.
Nessa tarde levei-o para o rio, não fui para a poço da dorna, com a sua pequena praia, por receio das brincadeiras dos outros miúdos e com medo de danificar o meu novo tesouro. Fui para o açude, um pouco mais abaixo, sentei-me sobre as rochas mornas, sob inclinados amieiros que no Inverno se cobriam de água até às copas, nadei solitário e li, li muito e muito depressa, como quem, febril, bate os dentes a velocidade inaudita, e perdi-me em sonhos onde velhas gravuras de Gustave Doré de uma velha edição de Le Corbeau de Edgar A. Poe passavam fugazes na memória sobrepondo-se com o rendilhado verde das ogivas de amieiros por cima de mim. Foi um momento mágico que nunca mais esqueci.
Voltei para casa e remexi a estante. Lá no fundo, meio esmagadas sob uma pilha de vidas de santos, repousavam as oprimidas Flores. Li-o nessa noite, de calções do pijama sobre os lençóis de linho, ouvindo o cantar dos grilos e o rumor do Paiva. Era bom, sem dúvida, mas nada se podia comparar à impressão causada por Fel no meu espírito.
Os anos foram passando até que, já com os meus dezoito anos, num depósito de livros em várias mãos que muito dificilmente passaria por ser um alfarrabista, descobri, entre livros dos cinco e fotonovelas, um livro de Dispersos de José Duro. Gostei, mas, mais uma vez, nada se comparava à poalha que se desprendera das folhas naquela tarde de Verão da minha infância.
Durante anos o mantive e o li, de tempos a tempos, algumas vezes apenas um poema, outras vários de seguida. Ainda hoje o leio e continuo a amar a sombria suavidade de um verbo consciente de uma morte próxima. Sou piegas? Provavelmente sim! Contudo ao longo dos anos sempre me acompanhou e sempre me revelou novas maneiras de sublimar em verso a lúcida dor do viver no morrer.



Em Busca


Ponho os olhos em mim, como se olhasse um estranho,
E choro de me ver tão outro, tão mudado…
Sem desvendar a causa, o íntimo cuidado
Que sofro do meu mal — o mal de que provenho.

Já não sou aquele Eu do tempo que é passado,
Pastor das ilusões perdi o meu rebanho,
Não sei do meu amor, saúde não na tenho,
E a vida sem saúde é um sofrer dobrado.

A minh’alma rasgou-ma o trágico Desgosto
Nas silvas do abandono, à hora do sol-posto,
Quando o azul começa a diluir-se em astros…

E à beira do caminho, até lá muito longe,
Como um mendigo só, como um sombrio monge,
Anda o meu coração em busca dos seus rastros…


Alvíssima


(Oração)

Como a Noite, Senhor,é linda
Com seus cabelos de luar…
Não chores mais, Lua bemvinda
Que me fazes também chorar…

Sorrisos do luar d’uma Caveira oca,
Sorrisos do luar enfeitiçando os brejos
Sorrisos do luar a angelizar a boca,
Sorrisos do luar onde escondi meus beijos…

Orações do luar dos lábios de nós ambos,
Orações do luar que os astros não rezaram,
Orações do luar a consagrar os tambos,
Orações do luar, das almas que noivaram.

Cabelos do luar, aveludados, frios,
Cabelos do luar em tranças latescentes;
Cabelos do luar — alvíssimas serpentes,
Cabelos do luar banhando-se nos rios…

Aromas do luar em revoadas francas,
Aromas do luar, a perfumar o céu…
Aromas do luar, sonâmbulos ao léu,
Aromas do luar, por noites todas brancas…

Brancuras do luar dispersas pelos montes…
Brancuras do luar — finos lençois de gelo…
Brancuras do luar, olhai o sete estrelo,
Brancuras do luar, a namorar as fontes…

Veludos do luar tecidos pela lua,
Veludos do luar, de lírios e de rosas…
Veludos do luar, ó vestes preciosas
Veludos do luar vestindo a noite nua…

Trémulos de luar — litanias peregrinas,
Trémulos de luar — ó harmonias cérulas,
Trémulos de luar, nas bocas aspérulas
Trémulos de luar, e lábios das boninas…

Tristezas do luar caindo-nos no peito,
Tristezas do luar, como um dobrar profundo…
Tristezas do luar anestisiando o Mundo,
Tristezas do luar, em lágrimas desfeito…

Lágrimas do luar da Lua aventureira,
Lágrimas do luar, da débil flor dos linhos…
Lágrimas do luar da mágua derradeira,
Lágrimas do luar, de moços e velhimhos…

Saudades do luar, na rama dos ciprestes,
Saudades do luar, há mochos a cantar…
Saudades do luar, são almas a chorar…
Saudades do luar, as podridões agrestes…

Velhinhos corações a verter sangue e máguas,
Velhinhos corações de mocidade negras,
Velhinhos corações — doridas toutinegras,
Velhinhos corações aos tombos pelas frágoas.

Vamos todos pedir à Lua sacrossanta
Na aspiração do Amor, na comunhão do Bem
Que o seu bendito olhar, o seu olhar de Santa,
Nos abençõe agora e para sempre amén!


in Antologia de Poetas Alentejanos



Doente

Que negro mal o meu! estou cada vez mais rouco!
Fogem de mim com asco as virgens d'olhar cálido...
E os velhos, quando passo, vendo-me tão pálido,
Comentam entre si: - coitado, está por pouco!...

Por isso tenho ódio a quem tiver saúde,
Por isso tenho raiva a quem viver ditoso,
E, odiando toda a gente, eu amo o tuberculoso.
E só estou contente ouvindo um alaúde.

Cada vez que me estudo encontro-me diferente,
Quando olham para mim é certo que estremeço;
E vai, pensando bem, sou, como toda a gente,
O contrário talvez daquilo que pareço...

Espírito irrequieto, fantasia ardente,
Adoro como Poe as doidas criações,
E se não bebo absinto é porque estou doente,
Que eu tenho como ele horror às multidões.

E amando doudamente as formas incompletas
Que às vezes não consigo, enfim, realizar,
Eu sinto-me banal ao pé dos mais poetas,
E, achando-me incapaz, deixo de trabalhar...

São filhos do meu tédio e duma dor qualquer
Meus sonhos de neurose horrivelmente histéricos
Como as larvas ruins dos corpos cadavéricos,
Ou como a aspiração de Charles Baudelaire.

Apraz-me o simbolismo ingénito das coisas...
E aos lábios da Mulher, a desfazer-se em beijos,
Prefiro os lábios maus das negregadas loisas,
Abrindo num ancelar de mórbidos desejos.

E é vão que medito e é em vão que sonho:
Meu coração morreu, minha alma é quase morta...
Já sinto emurchecer no crânio a flor do Sonho,
E oiço a Morte bater, sinistra, à minha porta...

Estou farto de sofrer, o sofrimento cansa,
E, por maior desgraça e por maior tormento,
Chego a julgar que tenho - estúpida lembrança -
Uma alma de poeta e um pouco de talento!

A doença que me mata é moral e física!
De que me serve a mim agora ter esperanças,
Se eu não posso beijar as trémulas crianças,
Porque ao meu lábio aflui o tóxico da tísica?

E morro assim tão novo! Ainda não há um mês,
Perguntei ao Doutor: - Então?...- Hei-de curá-lo...
Porém já não me importo, é bom morrer, deixá-lo!
Que morrer - é dormir... dormir... sonhar talvez...

Por isso irei sonhar debaixo dum cipreste
Alheio à sedução dos ideais perversos...
O poeta nunca morre embora seja agreste
A sua aspiração e tristes os seus versos!

A Caveira

Encontrei-a uma vez, a lívida caveira,
A rir, sinistramente, em doidas gargalhadas...
E pensei, nesse instante, ó almas torturadas!
Que ela seria em breve a minha companheira.

Depois vi, por meu mal, naquela ossada nua,
Que a Morte descarnara, em ânsias, brutalmente,
A imagem do meu ser, gelada e inconsciente,
Bebendo a luz do sol e as lágrimas da lua...

E tive ainda mais ódio a este viver tristonho,
Que arrasto, sem te ver, eu que por ti vivia,
Ó alma da minha alma e sonho do meu sonho!

Entretanto, começava o dia a esmorecer...
E eu fui-me perguntar à Sombra, que descia,
Se acaso não seriam horas de eu morrer!



O corvo

Quando o meu corvo, trêmulo, doente,
- Como quem sofre as minhas agonias -
Naquela noite veio, amargamente,
Dizer-me, soluçando, que morrias,

Percebi-lhe no olhar as nostalgias
da noite negra, sem luar, fremente,
Aonde as suas asas luzidias
Tomaram cor misteriosamente...

E à luz medrosa do candeeiro exausto,
Bebendo a minha dor num longo hausto
Mais triste que o soluço das nortadas,

Analisei a mágua de nós dois
Para ver qual sofria mais... depois...
Céus! Desatei, chorando, às gargalhadas!

Noivado Estranho

Quisera amar-te muito, ó Gémea do luar,
Num sonho excepcional, só de carícias feito,
Abendiçoar o céu na luz do teu olhar,
E a alma adormecer na curva do teu peito;

Quisera amar-te sempre, ó Doce como arminho
E casta como a pomba em seus arrulhos doces...
E, em troca deste amor, viver do teu carinho,
Que eu não vivia, não, Mulher, se tu não fosses!

Passar a vida inteira a ver-me nos teus olhos,
Apenas ter ventura em vez de ter abrolhos,
Beber o teu sorriso, e as máguas esquecê-las...

E quando a morte viesse e nos levasse a ambos
Realizarmos então os desejados tambos,
Na Igreja do Além... em meio das estrelas.

in Fel

Poemas de Fernando Guilherme Azevedo

Sou um estrangeiro que passa por mim.
Alheio, disperso.
A transfiguração da idade
Aclara-me, mas névoa.)
A imprecisão atómica do mundo
Sempre nos conduz a uma inabitação
Das coisas que nos entram pelo olhar
Como chama trémula a morrer na calçada.
As pedras.
As imemoriais pedras dos monumentos
Gritam, chamam por nós.
Como se o último, verdadeiro segredo
Fosse retornarmos às estátuas que fomos,
Divindades latentes nos passos que cruzamos
Nos passos uns dos outros.
Porque os caminhos são eternos,
E as fontes sempre jorrarão,
Como crianças leitosas a alcançar-nos
Uma outra forma do mundo
Que finalmente proporcionará repouso,
Estrelas sonolentas no húmus dos olhos.

_____________


Ser solitário é um estado de alma
Que perpetua lençois brancos,
O branco da castidade.
O homem solitário tem no seu olhar
A virgindade com que adora os outros homens,
Com que beija impoluto a Mulher-Mãe.
Ser solitário não é necessáriamente sofrimento,
Porque há encontro dentro de nós,
Na mais íntima construção da fortaleza
Que vence o tremor de flores delicadas
Que, qual verme, por vezes nos assalta de incredulidade.
Ser solitário é sobretudo estar predisposto,
Preparado para não mais o ser,
E de novo voltar a si próprio e à auto-companhia
Quando os ventos dos rostos e dos mundos
Devolvem a acidez onde só a ermida dela nos protege...

_________________________

O último telejornal
Germina opiniões especializadíssimas!
Todos comentam as últimas informações
Com uma sabedoria
Que quase são ministros filósofos.
Relembram-se treinos militares
E emborca-se imperiais.
Eu, querendo sossego,
Não mais que verdadeiro, pacífico sossego,
Oiço tudo isto
Como alguém que vem de muito longe.
Tento a todo o custo não escutar,
Mas eles teimam, eles são sábios
Assim, troco forçosamente
As memórias daquela que amo
por uma quase-morte do sentir
Genuinamente.
Oh, tenho tanta pena...
Que esta gente
não se evapore ou emigre,
Ou prepare a cama
Para nunca mais acordar!

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Mendes de Carvalho: Cantiga dos ais

Cantiga dos ais

Os ais de todos os dias
os ais de todas as noites
ais do fado e do folclore
o ai do ó ai ó linda

Os ais que vêm do peito
ai pobre dele coitado
que tão cedo se finou

Os ais que vêm da alma
ais d'amor e de comédia
ai pobre da rapariga
que se deixou enganar
ai a dor daquela mãe

Os ais que vêm do sexo
os ais do prazer na cama
os ais da pobre senhora
agarrada ao travesseiro
ai que saudades saudades
os ais tão cheios de luto
da viúva inconsolável

Ai pobre daquele velhinho
ai que saudades menina
ai a velhice é tão triste

Os ais do rico e do pobre
ai o espinho da rosa
os ais do António Nobre
ais do peito e da poesia
e os ais doutras coisas mais
ai a dor que tenho aqui
ai o gajo também é
ai a vida que tu levas
ai tu não faças asneiras
ai mulher és o demónio
ai que terrível tragédia
ai a culpa é do António

Ai os ais de tanta gente
ai que já é dia oito
ai o que vai ser de nós

E os ais dos liriquistas
a chorar compreensão

Ai que vontade de rir
E os ais do D. Dinis
ai Deus e u é

Triste de quem der um ai
sem achar eco em ninguém

Os ais da vida e da morte
ai os ais deste país

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

A poesia de Gaspara Stampa VI

(continuação)

XVI

Si come provo ognor novi diletti,
ne l'amor mio, e gioie non usate,
e veggio in quell'angelica beltate
sempre novi miracoli ed effetti,
così vorrei aver concetti e detti
e parole a tant'opra appropriate,
sì che fosser da me scritte e cantate,
e fatte cónte a mille alti intelletti.
Et udissero l'altre che verranno
con quanta invidia lor sia gita altera
de l'amoroso mio felice danno;
e vedesse anche la mia gloria vera
quanta i begli occhi suoi luce e forza hanno
di far beata altrui, benché si pèra.


XVI

Assim como sinto sempre novos prazeres,
nem o amor meu, e alegrias não usadas,
e percebo naquela angélica beleza
sempre novos milagres e efeitos,
assim queria ter conceitos e ditos
e palavras a tant'obra apropriados,
assim que fossem por mim escritos e cantados,
e prestadas contas a mil altos intelectos.
E ouvissem as outras que virão
com quanta inveja quanto o seu caminho contrário
do amoroso meu feliz dano;
e visse ainda a minha glória vera
quanto os belos olhos seus luz e força têem
de fazer feliz outras, ainda que morra.



XVII

Io non v'invidio punto, angeli santi,
le vostre tante glorie e tanti beni,
e que' disir di ciò che braman pieni,
stando voi sempre a l'alto Sire avanti;
perché i diletti miei son tali e tanti,
che non posson capire in cor terreni,
mentr'ho davanti i lumi alti e sereni,
di cui conven che sempre scriva e canti.
E come in ciel gran refrigerio e vita
dal volto Suo solete voi fruire,
tal io qua giù da la beltà infinita.
In questo sol vincete il mio gioire,
che la vostra è eterna e stabilita,
e la mia gloria può tosto finire.


XVII

Não vos invejo em nada, anjos santos,
as vossas tantas glórias e tantos bens,
e aquele desejo daquilo que bramam cheios,
estando vós sempre ao alto Senhor diante;
porque os dilectos meus são tais e tantos,
que não podem caber em corações terrenos,
enquanto tenho diante os lumes altos e serenos,
de que convém que sempre escreva e cante.
E como no céu grande refrigério e vida
do vulto Seu costumais vós fruir,
como eu aqui em baixo da beleza infinita.
Só nisto venceis o meu gozar,
que a vossa é eterna e estabelecida,
e a minha glória pode breve findar.



XVIII

Quando i' veggio apparir il mio bel raggio,
parmi veder il sol, quand'esce fòra;
quando fa meco poi dolce dimora,
assembra il sol che faccia suo viaggio.
E tanta nel cor gioia e vigor aggio,
tanta ne mostro nel sembiante allora,
quanto l'erba, che pinge il sol ancora
a mezzo giorno nel più vago maggio.
Quando poi parte il mio sol finalmente,
parmi l'altro veder, che scolorita
lasci la terra andando in occidente.
Ma l'altro torna, e rende luce e vita;
e del mio chiaro e lucido oriente
è 'l tornar dubbio e certa la partita.


XVIII

Quando vejo surgir o meu belo raio,
parece-me ver o sol, quando surge;
quando faz em mim depois doce demora,
assemelha ao sol que faça a sua viagem.
E tanta no coração alegria e vigor tenho,
tanta mostro no semblante então,
quanta a erva, que tinge o sol ainda
ao meio dia do mais incerto maio.
Quando pois parte o meu sol finalmente,
parece-me o outro ver, que descolorido
deixe a terra andando para ocidente.
Mas o outro volta, e traz luz e vida;
e do meu claro e lúcido oriente
é o tornar dúbio e certa a partida.



XIX

Come chi mira in ciel fisso le stelle,
sempre qualcuna nova ve ne scorge,
che, non più vista pria, fra tanti sorge
chiari lumi del mondo, alme fiamelle;
mirando fisso l'alte doti e belle
vostre, signor, di qualcuna s'accorge
l'occhio mio nova, che materia porge,
onde di lei si scriva e si favelle.
Ma, sì come non può gli occhi del cielo
tutti, perch'occhio vegga, raccontare
lingua mortal e chiusa in uman velo,
io posso ben i vostri onor mirare,
ma la più parti d'essi ascondo e celo,
perché la lingua a l'opra non è pare.


XIX

Como quem mira no céu fixo as estrelas,
sempre alguma nova aí descobre,
que, não antes vista, entre tantas surge
claros lumes do mundo, almas ardentes;
mirando fixo as altas doutas e belas
vossas, senhor, de alguma se apercebe
o olhar meu de nova, que matéria alonga,
onde de ela se escreva e se fale.
Ma, assim como não pode os olhos do céu
todos, que olho veja, contar
língua mortal e fechada em humano véu,
eu posso bem as vostras honras mirar,
mas a maior parte desses escondo e oculto,
porque a língua à obra não é par.



(continua)

Henrique Cayado: LXXIX - DE AMORE

LXXIX - DE AMORE

Sum puer ante omnes natus, sed tempore in omni
Sum puer: olim aetas quae fuit est hodie.
Est regnum sine fine meum, sine fine triumphus.
Miraris? Facient tempora nulla senem.




LXXIX - DO AMOR

Sou uma criança antes de todas nascido, mas em todos os tempos
permaneço criança: a idade que em tempos tinha tenho hoje.
O meu reino não tem fim como sem fim é o meu triunfo.
Espantas-te? Nenhum tempo me fará velho.


Henrique Cayado, Primeiro livro dos epigramas

António Ramos Rosa: "O fogo sob os passos vibra verde"

O fogo sob os passos vibra verde
sem o caminho exacto
A clareira é um lugar em que se está
O centro verdadeiro ou simulacro
imponderável
A aragem nas vértebras
O fogo dos pulsos
O inacessível tronco ardendo no quadrado
E um outro quadro com as folhas e o espaço
ditos não pela boca mas inscritos
na nulidade do vento e na nudez da escrita

domingo, 14 de agosto de 2011

Manuel Alegre: Sobre um mote de Camões

Se me desta terra for
eu vos levarei amor.
Nem amor deixo na terra
que deixando levarei.

Deixo a dor de te deixar
na terra onde amor não vive
na que levar levarei
amor onde só dor tive.

Nem amor pode ser livre
se não há na terra amor.
Deixo a dor de não levar
a dor de onde amor não vive.

E levo a terra que deixo
onde deixo a dor que tive.
Na que levar levarei
este amor que é livre livre.

Um poema de Casimiro de Brito

77

Sou nómada e basta-me
Beber a água que vem da montanha
E olhar a mica do céu onde se reflectem
As mutações da Coisa — o pó
Que nela pousa. A teia do conhecimento
Está podre e não vou
Deitar-me nela. Escrevo porque sou um arco
Que vai acumulando alguns restos
Alguma dor algum vento perfumado
E subitamente dispara. Cinza. Palavras
Que não têm deuses nem brilho nem nada.


in Casimiro de Brito, Na Via do Mestre

Gastão Cruz: A roupa envolve-nos



A roupa envolve-nos
a paragem do mar cresce contigo
a língua e o sentido tudo anda
tão ocupado tão cansado e destruído
que a roupa em
torno morre como um foco de ruído

O movimento cerca esta mudez
o mar desidratado é o abismo
onde revives
Viste os vales instáveis do mar
mas para que é perguntar senão que se fez de ti
O fogo sob as vozes que não ouves
A língua vive ainda?

Inscrevo na memória tumefacta
mais uma imagem
Esses corpos nascem
O que posso dizer para cobri-los?
Ouves? Está comigo
a mortalidade da tua vida

Como falar contigo? Mas o som
produzido era tanto
que as cordas se formavam com a sua saída
retomavam a forma destruída
enquanto
tudo o que te dizia dividia
um som tempestuoso

Na ocasião da queda
desses algum
olha as áreas correspondentes no mar
volta transforma-se
é um sinal de
contradição
e sob a chuva contínua de relâmpagos revive

Porém o som inibe-te prossegues
sem segurança o canto a turva cítara
vence-te não o canto repetido
Essas cordas do peito já distensas

submetem-se ao silêncio poderias
escolhê-las porém sempre repetes
os nomes desses corpos a mudez
intimida-te assim a poesia

nasce com o rumor dos próprios corpos
com o bater dos nomes entre os ombros
tão dóceis mar de músculos

mudos
o coração do corpo
repetindo os nomes turvos

Como é possível termos esquecido a linguagem?
Comparámos os corpos Se os descrevo
agora que deixámos de falar
esqueço a igualdade e nela cessa
a possibilidade de falar

É um erro a cidade alguma vez a
cantaste?
Mas já não é possível a verdade é que
definitivamente nela morres
Por isso escolherás o teu estilo
de novo por palavras errarás

Na praia exterminada não pudemos
cantar a liberdade
sobre o teu corpo correm turvas asas
de entre as pedras
levantas a cabeça enquanto cais

Depois a roupa gera e espalha a escuridão
cada corpo isolado se transforma
sob as asas que
o cobrem

Desencontramo-nos
a terra recomeça a deter-te
preciso de dizer
esse teu nome
Mas não ouças a minha fala transformada


in Gastão Cruz, poesia 1961-198

5 poemas de António Manuel Couto Viana

Despojo

E, agora, o que faremos?
A quem legar o que resta
Do simulacro de festa
Que tivemos?

Quem aproveita os detritos
De uma alegria forçada?
Quem confunde aflitos gritos
Com imposta gargalhada?

Iremos por onde alguém
Descubra os nossos farrapos.
Vês flores no jardim de além?
- Vejo sapos.




Estival


A imensa praia. O sol rubro, preciso.
E o mar de sempre, impetuoso e vário.
Meu corpo nu, aberto no solário,
Sorve o final do dia, lento e liso.

Estio é estar assim, sem pensamento;
Sentir apenas, sobre a pele doirada,
A saliva do mar, fria e salgada,
E o arrepio cálido do vento.

Nada mais. Quando muito, um vago olhar
Um vulto jovem, ágil, que se afasta,
Diluído na luz crepuscular.

E só porque o seu ritmo contrasta
Com a serena vibração do ar
E a paz da minha carne gorda e gasta.



Camilo Pessanha I


Um aroma subtil. Um lume. Um fumo leve.

Um delicado ritual.

O impulso breve que se descreve

Quase indiscreto, quase sensual.



A música interior apenas murmurada.

A luz difusa. Trémulas imagens.

Ondas de lua. Exílio. A flor despetalada.

Viagens.



Onde singra o navio sombreado de tédio?

Oscila. O servedouro de uma esteira.

A súbita emoção. O clarim do assédio

Desenrola a bandeira.



O ópio envolve o sonho num afago.

Já tudo tão distante! Tão inútil! Tão vago!





Camilo Pessanha II



Em campa rasa, a tampa de granito

Afonta-o no brasão de fidalguia,

No nome (com Doutor e com d'Almeida) escrito

Com erros de ortografia.



Quem roubou as correntes que o cercavam de ferro?

(Quieto o coração, no temor das algemas.)

Quem poluiu e rasgou o lençol do desterro

Que lhe envolveu, no enterro, os ossos e os poemas?



Ei-lo, já não ali, liberto da prisão,

Por fim a deslizar (assim outrora o quis)

Sem ruído, a sumir-se como um verme, no chão

E vê treva em um país

Perdido de segredo e solidão.




Távola Redonda



Poetas: vamos dar as mãos! De novo

Se escute em nós uma canção de ronda.

Poesia - única távola redonda

Com pão e vinho para todo o povo.



Quem tiver sede, beba deste vinho.

Quem tiver fome, coma deste pão.

Só o poeta vivo é nosso irmão;

P'ra ele, nada é fim, mas sim caminho.

Há flores no centro? Vou chamar-lhes fé.

Flori com elas vossa botoeira:

A voz do poeta é pura e verdadeira

Se - em Deus? se em si? Nos outros? - sonha e crê.

Ruy Belo: Figura Jacente

Meu rosto nasce desta condição horizontal
de quem tem a cobri-lo todo o seu cansaço
Deus teve para mim morte mais rasa
do que a morte que o sol encontra entre as águas
Desfez-se a curva última da estrada
nada ficou após meus gastos passos

Ninguém morrera ainda tanto como eu
só tive de estender um pouco mais o corpo
Sobre o meu rosto passam uma a uma as gerações
e vem lavar-me a água os velhos pés
E diz-me Deus, tão acessível como o mar nas praias:
-- Tu és cada vez mais aquilo que tu és

Há entre as oliveiras sítio para o sol
e a brisa da infância canta rindo nos ramos
entre o cheiro do giz e as canções da escola

Deus é perto de mim como uma árvore


in Ruy Belo, O problema da habitação

JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS: O RELÓGIO (adereço conceptual para usar no pulso)


Pára-me um tempo por dentro
passa-me um tempo por fora.

O tempo que foi constante
no meu contratempo estar
passa-ma agora adiante
como se fosse parar.
Por cada relógio certo
no tempo que sou agora
há um tempo descoberto
no tempo que se demora.
Fica-me o tempo por dentro
passa-me o tempo por fora.

sábado, 13 de agosto de 2011

A poesia de Gaspara Stampa V

(continuação)

XIII

Chi darà penne d'aquila o colomba
al mio stil basso, sì ch'ei prenda il volo
da l'Indo al Mauro e d'uno in altro polo,
ove arrivar non può saetta o fromba?
e, quai chiara e risonante tromba,
la bellezza, il valor, al mondo solo,
di quel bel viso, ch'io sospiro e còlo,
descriva sì, che l'opra non soccomba?
Ma, poi che ciò m'è tolto, ed io poggiare
per me stessa non posso ove conviene,
sì che l'opra e lo stil vadan di pare,
l'udranno sol queste felici arene,
questo d'Adria beato e chiaro mare,
porto de' miei diletti e di mie pene.


XIII

Quem dará penas d'águia ou de pomba
ao meu estilo baixo, assim que ele prenda o voo
do Indo ao Mauro e de um ao outro polo,
onde chegar não pode flecha ou funda?
e. qual clara e ressonante trompa,
a beleza, o valor, ao mundo só,
daquele belo vulto, qu'eu suspiro e adoro,
descreva assim, que a obra não sucumba?
Mas, já que tal me é tolhido, e eu apoiar
por mim mesma não posso onde convém,
assim que obra e estilo vão a par,
a ouvirão apenas estas felizes arenas,
este de Adria beato e claro mar,
porto dos meus dilectos e das minhas penas.



XIV

Che meraviglia fu, s'al primo assalto,
giovane e sola, io restai presa al varco,
stando Amor quindi con gli strali e l'arco,
e ferendo per mezzo, or basso or alto,
indi 'l signor, che 'n rime orno e essalto
quanto più posso, e 'l mio dir resta parco,
con due occhi, anzi strai, che spesso incarco
han fatto al sole, e con un cor di smalto?
ed essendo da lato anche imboscate,
sì ch'a modo nessun fess'io difesa,
alta virtute e chiara nobiltate?
Da tanti e ta' nemici restai presa;
né mi duol, pur che l'alma mia beltate,
or che m'ha vinta, non faccia altra impresa.



XIV

Que maravilha foi, se no primeiro assalto,
jovem e só, fiquei pelo caminho,
estando Amor por isso com as setas e o arco,
e ferindo pelo meio. ora baixo ora alto,
de onde o senhor, que em rimas orno e exalto
quanto mais posso, e o meu dizer resta parco,
com dois olhos, ou ainda mais, que frequente ofensa
ao sol fizeram, e com um coração valente?
e sendo de lado também emboscada,
assim que de nenhum modo foss'eu defesa,
alta virtude e clara nobreza?
De tantos e tantos inimigos fiquei cativa;
nem me doí, desde qua a alma minha beleza,
ora que me venceu, não cometa outra empresa.



XV

Voi, che cercando ornar d'alloro il crine
per via di stile, al bel monte poggiate
con quante sí fe' mai salde pedate,
anime sagge, dotte e pellegrine,
in questo mar, che non ha fondo o fine,
le larghe vele innanzi a me spiegate,
e gli onori e le grazie ad un cantate
del mio signor sì rare e sì divine:
perché soggetto sì sublime e solo,
senz'altra aíta di felice ingegno,
può per se stesso al cielo alzarci a volo.
Io per me sola a dimostrar ne vegno
quanto l'amo ad ognum, quanto lo còlo;
ma de le lode sue non giungo al segno.


XV

Vós, que buscando ornar de louro a cabeça
devido ao estilo, ao belo monde apoiais
com quantos deis nunca firmes passos,
almas sábias, doutas e peregrinas,
neste mar, que não tem fundo ou fim,
as largas velas diante de mim desfraldadas,
e as honras e as as graças a uma voz cantadas
do meu senhor tão altas e tão divinas:
porque sujeito tão sublime e só,
sem outra ajuda de feliz engenho,
pode por si só ao ceu alçar-se em voo.
Eu por mim só demonstrar venho
quanto o amo a cada um, quanto o adoro;
mas os louvores seus não atinjo.



(continua)

Um poema de Pietro Bembo


retrato do Cardeal Pietro Bembo por Ticiano

Pietro Bembo (Veneza, 20 de Maio de 1470 – Roma, 18 de Janeiro de 1547) foi um gramático, escritor, humanista, historiador e cardeal veneziano. Foi o primeiro a estabelecer as regras da língua italiana de modo seguro e coerente, com base nas práticas dos maiores escritores toscanos do século XIV. Contribuiu decisivamente para a difusão na Itália e no exterior do modelo poético petrarquista . As suas idéias foram também fundamentais para a formação musical do estilo madrigal do século XVI.

Alma cortese che dal Mondo errante
Partendo nella tua più verde etade,
Hai me lasciato eternamente in doglia,
Dalle sempre beate alme contrade,
Ov'or dimori cara a quell'Amante,
Che più temer non puol, che ti si toglia;
Risguarda in terra, e mira, u'la tua spoglia
Chiude un bel sasso; e me, che 'l marmo asciutto
Vedrai bagnar, te richiamando, ascolta.
Però che chiusa, e tolta
L'alta pura dolcezza, e rotto in tutto
Fù 'l più fido sostegno al viver mio,
frate, quel dì, che te n'andasti a volo.
Da indi in quà né lieto, né securo
Non ebbi un giorno mai, né d'aver curo;
Anzi mi pento esser rimasto solo,
Che son venuto, senza di te, in obblio
Di me medesmo, e per te solo er'io
Caro a me stesso. Or teco ogni mi gioia
È spenta, e non so già, perch'io non muoia.



Alma cortês que do Mundo errante
Partindo na tua mais verde idade,
Me deixaste eternamente em dores,
Das sempre beatas almas jogadas,
Ond'ora permaneces cara àquel'Amante,
Que mais temer não pode, que te se tolha;
Protege em terra, e olha, onde os teus despojos
Encerra uma bela pedra; e eu, que o mármore enxuto
Verás banhar, chamando-te, escuta.
Mas já que fechada, e retirada foi
A alta pura beleza, e destroçado
Foi o mais fiel apoio ao viver meu,
irmão, aquele dia, que partiste em voo,
Desde então nem feliz, nem seguro
Tive um dia mais, nem de ter curo;
Antes me arrependo de ter ficado só,
Que cheguei, sem ti, ao olvido
De mim mesmo, e para ti só era eu
Caro a mim mesmo. Ora contigo cada minha alegria
Feneceu, e não sei já, porque não morra.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS: DA CONDIÇÃO HUMANA

Todos sofremos.
O mesmo ferro oculto
Nos rasga e nos estilhaça a carne exposta.
O mesmo sal nos queima os olhos vivos.
Em todos dorme
A humanidade que nos foi imposta.
Onde nos encontramos, divergimos.
É por sermos iguais que nos esquecemos
Que foi do mesmo sangue,
Que foi do mesmo ventre que surgimos.


in José Carlos Ary dos Santos, A liturgia do sangue

A poesia de Gaspara Stampa IV

(continuação)

VIII

Se, così come sono abietta e vile
donna, posso portar sì alto foco,
perché non debbo aver almeno un poco
di ritraggerlo al mondo e vena e stile?
S'amor con novo, insolito focile,
ov'io non potea gir, m'alzò a tal loco,
perché non puó non con usato gioco
far la pena e la penna in me simile?
E, se non può per forza di natura,
puollo almen per miracolo, che spesso
vince, trapassa e rompe ogni misura.
Come ciò sia non posso dir espresso;
io provo ben che per mia gran ventura
mi sento il cor di novo stile impresso.


VIII

Se, assim como sou abjecta e vil
mulher, posso levar tão alto o fogo,
porque não devo ter somente um pouco
de desviá-lo do mundo em veia e estilo?
Se amor com nova, insólita alcova,
ond'eu não podia jazer, m'elevou a tal ponto,
porque não pode não com usado jogo
fazer pena e penas em mim iguais?
E, se não pode por força de natura,
pode-o somente por milagre, que frequente
vence, ultrapassa e quebra toda a medida.
Como tal seja não posso dizer expresso;
eu sinto bem que por minha grã ventura
sinto o coração de novo estilo impresso.


IX

S'avien ch'un giorno Amor a me mi renda,
e mi ritolga a questo empio signore;
di che paventa, e non vorrebbe, il core,
tal gioia del penar suo par che prenda;
voi chiamerete invan la mia stupenda
fede, e l'immenso e smisurato amore,
di vostra crudeltà, di vostro errore
tardi pentito, ove non è chi intenda.
Ed io, cantando la mia libertade,
da così duri lacci e crudi sciolta,
passerò lieta a la futura etade.
E, se giusto pregar in ciel s'ascolta,
vedrò forse anco in man di crudeltade
la vita vostra a mia vendetta involta.



IX

Se sucede que um dia Amor a mim me renda,
e me retira a este ímpio senhor;
dia que receia, e não o queria, o coração,
que tal gozo do penar seu igual receba;
Chamareis em vão a minha estupenda
fé, e o imenso e desmesurado amor,
da vossa crueldade, do vosso erro
tarde arrependido, quando ninguém ouvirá.
E eu, cantando a minha liberdade,
de tão crus e duros laços liberta,
passarei feliz à futura idade.
E, se o justo pregar no céu se escuta,
verei talvez ainda em jeito de crueldade
a vida vossa na minha vingança envolta.


(continua)

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Não só Vinho, mas nele o Olvido



Não só vinho, mas nele o olvido, deito
Na taça: serei ledo, porque a dita
É ignara. Quem, lembrando
...Ou prevendo, sorrira?
Dos brutos, não a vida, senão a alma,
Consigamos, pensando; recolhidos
No impalpável destino
Que não 'spera nem lembra.
Com mão mortal elevo à mortal boca
Em frágil taça o passageiro vinho,
Baços os olhos feitos
Para deixar de ver.

Ricardo Reis, in "Odes"

3 Poemas de Ruy Belo




MORS SEMPER PRAE OCULIS

Narro-me letra por letra para ti
e sou a breve palavra que tu deixas
como uma esteira branca
no céu azul do tempo
subo tijolo a tijolo até às tuas mãos
e sou dos edifícios da cidade
um dos que hão-de ruir amanhã
Tombaram-nos primeiros os avós
e chega já a vez dos nossos pais
Quando faltar um choupo
no caminho da infância que vai dar ao rio
receberemos no rosto a morte
com a surpresa do primeiro homem
Eu fui um dia um nome escrito numa pedra
onde as mulheres da minha aldeia
batiam a roupa que nos cobre no tempo
E depois já não soube mais nada
mas a primavera passou rente a mim:
a morte fora continuava

As duas mortes

A noite desce ainda somos jovens
Morrer é deixar isto a este lado
de nada serve já
o diálogo com vozes silêncios
na praia a nosso lado
Amanhã molharemos
o corpo noutro dia e beberemos
na bica costumada
onde poderá subitamente correr
uma canção conhecida

Cada dia mais morte que morte
haverá para nós no fim dos dias?

in Ruy Belo, Aquele grande rio Eufrates


Nós os vencidos do catolicismo

Nós os vencidos do Catolicismo
que não sabemos já donde a luz mana
haurimos o perdido miticismo
nos acordes dos carmina burana

Nós que perdemos na luta da fé
não é que no mais fundo não creiamos
mas não lutamos já firmes e a pé
nem nada impomos do que duvidamos

Já nenhum garizim nos chega agora
depois de ouvir como a samaritana
que em espírito e verdade é que se adora
Deixem-me ouvir os carmina burana

Nesta vida é que nós acreditamos
e no homem que dizem que criaste
se temos o que temos o jogamos
«Meu deus meu deus porque me abandonaste?»

in Ruy Belo, Homem de Palavras[s]


terça-feira, 9 de agosto de 2011

Luís Vaz de Camões: AMOR É FOGO QUE ARDE SEM SE VER



Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;
É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;
É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.
Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?


in Luís Vaz de Camões, Lírica

Uma poesia de Francesco de Lemene




Francesco De Lemene (Lodi, 19 de Fevereiro de 1634 – Lodi, 24 de Julho de 1704) foi um poeta e librettista italiano.

Oriundo de uma família aristocrática, estuda na Università di Bologna e di Pavia, onde obtém diploma em 1655. Foi sucessivamente empregado na então administração espanhola, primeiro como orador público em Milão e posteriormente como decurião em Lodi. Em 1661 permanece em Roma onde frequenta o círculo de Cristina da Suécia. Foi nesta cidade que iniciou a sua actividade libretística. Em 1691 passa a fazer parte da Accademia dell'Arcadia com o pseudónimo literário de Arezio Gateatico.


In Giardin, ch’avea dipinto
La Natura in vaga scena,
Discorrean della lor pena
Una Rosa, ed un Giacinto.
Di quest’Aure ivi presenti
Mi diss’una in sua favella,
Che in tal guisa e Questo, e Quella
Intrecciavano i tormenti.
Piangi, o Rosa? E tu sospiri,
O Giacinto? Ahi duolo!
Ahi morte!Qual destin? qual dura sorte?
Onde il pianto? onde i sospiri?
Ti dirò la doglia acerba,
Onde, o Rosa, io sto languendo;
Che dal seno al labbro uscendo
Spesso il duol si disacerba.
Spiegherò la doglia anch’io,
Che trafigge il mio pensiero;
Perché dica il passeggiero,
Se v’ha duol simile al mio.
Dunque, o Rosa, in dolci metri
La cagion spiega del pianto.
Parla tu, Giacinto. Intanto
Fia, ch’io tregua al pianto impetri.
Se, Regina, è tuo diletto,
Rinovare il duol mi piace.
Odi me. Del Sol seguace
Fui fra tanti il piú diletto.
Ne’ suoi giri il divin Sole,
O se il giogo al Monte indora,
O se l’Horto egli colora,
Per compagno ognor mi vuole.
Che piú dir? De’ raggi amati
Mi colmai la cieca mente;
Perché trassi riverente
Nel suo sen sonni beati.
Picciol lobo (ah Pomo ingrato!)
Perché a me la morte diede,
Or morir per me si vede
Di me il Sole innamorato.
Quindi io spiego in queste foglie
Con un’Ahi, che n’esce fuori,
Il dolor de’ suoi dolori,
E le sue nelle mie doglie.
O Giacinto, io con fatica
Dirò il duol, che mi tormenta.
Ho ben’Alma, che lo senta,
Ma non Lingua, che lo dica.
Tu lo mira. Ho molle il Ciglio
Di rugiada lagrimosa,
Come Madre dolorosa,
Che perduto abbia il suo Figlio.
Volgi il guardo, ahi per pietade,
A mirar Vergine afflitta:
Vedi pur, che m’han trafitta,
Non so dir se Spine, o Spade.
Come tu, di macchia oscura
Io non ho le foglie impresse;
Perché il Sol per sua m’elesse,
E mi volle tutta pura.
Ma quel Sol, che mi dà vita,
È lo stesso, che m’uccide;
Che da me l’alma divide,
Se da me vuol far partita.
Quand’ei nasce, oh me felice!
Son tra i fior la fortunata,
E mi dice ognun beata;
Ma se muore, oh me infelice!
Ei nell’Orto, ed io nell’Horto,
Quando spunta, allora io spunto;
Ma, l’Occaso ad ambi giunto,
Muoro anch’io, quand’egli è Morto.
Qual con nuovo oscuro velo
Atra Notte il Mondo serra?
Qual tremor scuote la Terra?
Qual’orrore ingombra il Cielo?
Ahi. Tramonta il Sol, che adoro.
Or contempla il mio martire:
Anch’io muoro al suo morire.
Muoro, ahi lassa. Ahi lassa, muoro.
Qui gelò la Rosa, e svenne,
E cadea già sul terreno,
Ma, qual Figlio, entro il suo seno
Il Giacinto la sostenne.
Or se sola sí funesta
Di pietà, d’orror v’ingombra,
Che fia poi, se colta ogn’ombra,
Un bel ver si manifesta?
Finger volli, e finsi solo
Per pietà de’ vostri affetti;
E ’l coprii con duo Fioretti,
Per mostrar men fero il duolo.
Questi or vuol la Cetra mia
Disvelar pietosi inganni.
Il Giacinto era Giovanni,
E la Rosa era Maria.


No Jardim, que tinha pintado
A Natureza em vaga cena,
Discorriam das suas penas
Uma Rosa, e um Jacinto.
De estas Brisas então presentes
Me disse uma no seu linguarejar,
Que desse modo e Isto, e aquilo
Entrançavam os tormentos.
Choras, ó Rosa? E tu suspiras,
Ò Jacinto? Ah como me dói!
Ah morte!Qual destino? que dura sorte?
Onde o choro? onde os suspiros?
Te direi a dor pungente,
De que, ò Rosa, estou sofrendo;
Que do seio ao lábio saindo
Não raro a dor se atenua.
Explicarei a dor também eu,
Que trespassa o meu pensar;
Que assim diga o passageiro,
Se tendes dor semelhante à minha.
Logo, ò Rosa, em doces metros
A razão explica do pranto.
Fala tu, Jacinto. Enquanto
Tal, que eu tréguas ao pranto suplique.
Se, Rainha, é teu prazer,
Renovar a dor me apraz.
Odeias-me. Do Sol sequaz
Fui entre tantos o mais dilecto.
Nos seus cursos o divino Sol,
Ou se o jugo ao Monte doura,
Ou se o Horto ele colora,
Para companheiro sempre me quer.
Que mais dizer? Dos raios amado
Me enchi a cega mente;
Porque trouxesse reverente
No seu seio sonos felizes.
Pequeno lobo (ah Pomo ingrato!)
Porque a mim a morte deu,
Ora morrer par mim se vê
Diz-me o Sol enamorado.
Por isso o explico nestas folhas
Com um Ai, que de dentro vem,
A dor das suas dores,
E as suas nas minhas dores.
Ò Jacinto, eu com fadiga
Direi a dor, que me atormenta.
Tenho bem Alma, que o ouça,
Mas não língua, que o diga.
Tu o vês. Tenho mole o bordo
De orvalho lacrimoso,
Como Mater dolorosa,
Que perdido tenha o Filho.
Volve o olhar, ai por piedade,
A olhar Virgem aflita:
Vê também, que me trespassaram,
Não sei dizer se Espinhos, se Espadas.
Como tu, de mancha obscura
Não tenho eu as folhas impressas;
Porque o Sol para sua m'elegeu,
E me quer toda pura.
Mas aquele Sol, que me dá vida,
É o mesmo, que me mata;
Que me mim a alma divide,
Se de mim quer fazer partida.
Quand’ele nasce, ai sou feliz!
Sou entre as flores a afortunada,
E todas me chamam beata;
Mas se morre, ai sou infeliz!
Ele no Orto, e eu no Horto,
Quando surge, então eu surjo;
Mas, o Ocaso a ambos junto,
Morro também eu, quand’ele é Morto.
Quem com novo obscuro véu
Escura Noite o Mundo encerra?
Que tremor sacode a Terra?
Que horror enche os Céus?
Ai. Desce o Sol, que adoro.
Ora contempla o meu martírio:
Também eu morro ao seu morrer.
Morro, ai coitada. Ai coitada, morro,
Aqui gelou a Rosa, e desfalece,
E caia já em terra,
Mas, qual Filho, no seu seio
O Jacinto a susteve.
Ora se só tão funesta
De piedade, de horror vos enche,
que seja então, se colhida cada sombra,
Que um bel verso se manifeste?
Fingir quis, e fingi apenas
Por piedade dos vossos afectos;
E os cobri com dois Floreados,
Para mostrar quão fera a dor.
Estes or quer a Cítara minha
Desvelar piedosos enganos.
O Jacinto era Giovanni,
E a Rosa era Maria.



Lodovico Antonio Muratori - Della perfetta poesia italiana

Um soneto di Baldassare Stampa

Irmão de Gaspara Stampa do qual sabemos relativamente pouco: o ter sido dado à arte de poetar e a sua inscrição num ciclo de poetas admiradores de Pietro Aretino.

Felice cuor, che vinto dal disio
Da me partisti, e seguitando Amore,
Che ti condusse del mio albergo fuore,
Nel dolce albergo entrasti, ond’egli uscío.

Se ti ricordi, che pur fosti mio,
Quando, lasso, io vivea tempo migliore,
Ascolta i prieghi miei, che ’l fero ardore
Mi detta, e l’aspro affanno acerbo, e rio,

Poiché venir non posso, ove tu sei,
E siccome tu prima in me ti stavi,
Cosí in te starmi ore tranquille, e liete;

Dí, raccontando il mio tormento a lei:
Non piú, Donna, per voi dolore aggravi
Il fedel, ch’io reggeva, or voi reggete.




Feliz coração, que vencido pelo desejo
De mim partiste, e seguindo Amor
que te conduziu do meu albergue para fora,
No doce albergue entraste, donde ele saiu.

Se te recordas, que contudo foste meu,
Quando, coitado, eu vivia tampos melhores,
Escuta as preces minhas, que o fero ardor
Me dita, e o áspero aperto acerbo, e rio,

Pois que ir não posso, onde tu estás,
E tal como antes em mim tu estavas,
Assim em ti estaria horas tranquilas, e felizes;

Díz, contando o meu tormento a ela:
Não mais, Mulher, por vós dor agrave
O fiel, que sustinha, ora vós susteides.


in Lodovico Antonio Muratori; Della perfetta poesia italiana

domingo, 7 de agosto de 2011

JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS: A LUVA


O aceno penumbra da tua mão camurça
a lágrima em branco do teu rosto livro
a página momento que o teu gesto segura
por detrás do livro


in ADEREÇOS, ENDEREÇOS (1965)

JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS: PAVANA PARA UMA BURGUESA DEFUNTA

A cabeça de vaca de minha tia mais velha
repousa em guerra lenta no cemitério maior.
Rói-lhe o bicho das contas a fímbria da orelha.
Rói-lhe o rato da raiva as narinas sem cor.

Repousa em paz Raposa que na toca
fareja a galinhola e o fricassé.
Já não mija mas cheira
já não vive mas ousa
ser a santa que foi ser o estrume que é.

A cabeça de vaca de minha tia refoga
nas lágrimas burguesas da família enlatada
cozinha-lhe a memória um viúvo de toga
descasca-lhe a cebola uma filha frustrada.

A cabeça de vaca de minha tia meneia
o sim-sim o não-não dos outros semivivos
na família a razão de se morrer a meias
é a exalação dos suspiros cativos.

Se não fosse o desgosto se não fosse a gordura
o retrato na sala o buraco no ventre
se não fosse de força tinha feito a escritura
nem sequer houve tempo para o oiro dos dentes.

Minha tia mastiga minha tia castiga
na saleta do inferno as almas dos criados:
-- não me limpaste o pó a campa tem urtigas
atrasaste o jantar dos condenados.

A cabeça de vaca de minha tia sem nome
coze no fogo brando do que é passar à história.
Dissolve-se na boca resolve-se na fome
do senhor que a devora em sua santa glória.



in INSOFRIMENTO IN SOFRIMENTO (1969)

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Fur Osguinha: um soneto de Gaspara Stampa

(continuação)

VI

Un intelletto angelico e divino,
una real natura ed un valore,
un disio vago di fama e d'onore,
un parlar saggio, grave e pellegrino,
un sangue illustre, agli alti re vicino,
una fortuna a poche altre minore,
un'età nel suo proprio e vero fiore,
un atto onesto, mansueto e chino,
un viso più che 'l sol lucente e chiaro,
ove bellezza e grazia Amor riserra
in non mai più vedute o udite tempre,
fûr le catene, che già mi legâro,
e mi fan dolce ed onorata guerra.
O pur piaccia ad Amor che stringan sempre!


VI

Um intelecto angélico e divino,
uma real natura e um valor,
um desejo vago de fama e de honra,
um falar sábio, grave e pelegrino,
um sangue ilustre, aos altos reis vizinho,
uma fortuna a poucos outros menor,
um'idade verdadeiramente em flor,
um agir honesto, brando e humilde,
uma face mais que o sol luzente e clara,
onde beleza e graça o Amor encerra
em nunca mais vistas ou ouvidas têmperas,
foram as correntes, que já me agrilhoaram,
e me fazem doce e honrada guerra.
Que apraza a Amor que estreitem sempre!


(continua)

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

A poesia de Gaspara Stampa III

(continuação)


II


Era vicino il dì che 'l Creatore,
che ne l'atezza sua potea restarsi,
in forma umana venne a dimostrarsi,
dal ventre virginal uscendo fore,
quando degnò l'illustre mio signore,
per cui ho tanti poi lamenti sparsi,
potendo in luogo più alto annidarsi,
farsi nido e ricetto del mio core.
Ond'io sì rara e sì alta ventura
accolsi lieta; e duolmi sol che tardi
mi fe' degna di lei l'eterna cura.
Da indi in qua pensieri e speme e sguardi
volsi a lui tutti, fuor d'ogni misura
chiaro e gentil, quanto 'l sol giri e guardi.



II


Era vizinho o dia que o Criador,
que nas alturas suas podia ficar,
em forma humana se veio a demonstrar,
do ventre virginal nascendo,
quando dignou o ilustre meu senhor,
por quem depois tantos lamentos espalhei,
podendo-se em mais alto sítio aninhar,
fazer-se ninho e refúgio do meu coração.
Onde tão rara e alta ventura
acolhi alegre; e só me doi que tarde
me fez digna de sí o eterno cuidar.
Desde então pensamentos e esperança e olhares
volvi a ele todos, fora de qualquer medida
claro e gentil, de quantos o sol cobre e vê.



III


Se di rozzo pastor di gregge e folle
il giogo ascreo fe diventar poeta
lui, che poi salse a sì lodata meta,
che quasi a tutti gli altri fama tolle,
che meraviglia fia s'alza ed estolle
me bassa e vile a scriver tanta pièta.
chel che può più che studio e pianeta,
il mio verde, pregiato ed alto colle?
La cui sacra, onorata e fatal ombra
dal mio cor, quasi sùbita tempesta,
ogni ignoranza, ogni bassezza sgombra.
Questa da basso luogo m'erge, e questa
mi rinova lo stil, la vena adombra,
tanta virtù nell'alma ognor mi desta!



III


Se de rude pastor de rebanhos e gentes
o jugo áscreo fez ser poeta
a ele, que depois subiu a tão louvada meta,
que quase a todos os outros fama tolhe,
que a maravilha sua se alça às estrelas
a mim baixa e vil no escrever tanta piedade,
aquele que mais pode que estrela e planeta,
o meu verde, prezado e alto monte?
Cuja sacra, honrada e fatal sombra
do meu coração, como súbita tempesta,
toda a ignorância, toda a baixeza livra.
Esta de baixo local me ergue, e esta
me renova o estilo, a veia realça,
tanta virtude na alma para sempre me desperta!


Áscreo - referência a Ascra, cidade da Beócia situada nas faldas do monte Hélicon e pátria de Hesíodo
Monte - no original "colle" apresenta um duplo sentido, o de "colina", "monte" que continua a referência ao Hélicon; e a referência ao objecto dos amores de Gaspara Stampa, o Conde Collantino di Collalto



IV


Quando fu prima il mio signor concetto,
tutti i pianeti in ciel, tutte le stelle
gli diêr le grazie, e queste doti e quelle,
perch'ei fossi tra noi solo perfetto,
Saturno diègli altezza d'intelletto;
Giove il cercar le cose deggne e belle;
Marte appo lui fece ogn'altr'uomo imbelle;
Febo gli empì di stile e senno il petto;
Vener gli diè bellezza e leggiadria;
eloquenzia Mercurio; ma la luna
lo fe' gelato più ch'io non vorria.
Di queste tante e rare grazie ognuna
m'inflammò de la chiara fiamma mia,
e per agghiacciar lui restò quell'una.


IV

Quando primeiro foi o meu senhor concebido,
todos os planetas no céu, todas as estrelas
graças lhe concederam, e estes dotes e aqueles,
para que fosse ele entre nós o único perfeito,
Saturno lhe deu a altura d'intelecto;
Jove o buscar as coisas dignas e belas;
Marte fez os outros homens vizinhos imbeles;
Febo lhe encheu de estilo e tino o peito;
Vénus lhe deu beleza e alegria;
eloquência Mercúrio; mas a Lua
o fez gelado mais do que eu não o queria.
Destas tantas e raras graças cada uma
me inflamou da clara chama minha,
e para gelar restou-lhe aquela.



V


Io assomiglio il mio signor al cielo
meco sovente. Il suo viso è 'l sole;
gli occhi, le stelle; e 'l suon de 'l parole
è l'armonia, che fa 'l signor de Delo.
Le tempeste, le piogge, i tuoni e 'l gelo
son i suoi sdegni, quando irar si suole;
le bonacce e 'l sereno è quando vuole
squarciar de l'ire sue benigno il velo.
La primavera e 'l germogliar de' fiori
è quando ei fa fiorir la mia speranza,
promettendo tenermi in questo stato.
L'orrido verno è poi, quando cangiato
minaccia di mutar pensieri e stanza,
spogliata me de' miei più ricchi onori.



V


Comparo eu o meu senhor ao céu
frequentemente. A sua face é o sol;
os olhos, as estrelas; e o som das palavras
é a harmonia que cria o Senhor de Delos.
As tempestades, chuvas, trovões e gelos
são seus desdéns, quando irar se deve;
as bonanças e o sereno quando quer
rasgar de iras suas o benigno velo.
A primavera e o brotar das flores
é quando faz florir a minha esperança,
prometendo manter-me neste estado.
O hórrido inverno é logo, quando mudado
ameaça de mudar de pensar e de quarto,
despojada eu das minhas mais ricas honras.


Senhor de Delos - O deus Apolo que aí era venerado e tinha um importante santuário


VII


Chi vuol conoscer, donne, il mio signore,
miri un signor di vago e dolce aspetto,
giovane d'anni e vecchio d'intelletto,
imagin de la gloria e del valore:
di pelo biondo, e di vivo colore,
di persona alta e spazioso petto,
e finalmente in ogni opra perfetto,
fuor ch'un poco (oimè lassa!) empio in amore.
E chi vuol poi conoscer me, rimìri
una donna in effetti ed in sembiante
imagin de la morte e de' martìri,
un albergo di fè salda e costante,
una, che, perché pianga, arda e sospiri,
non fa pietoso il suo crudel amante.


VII

Quem conhecer queira, ó mulheres, o meu senhor,
mire um senhor de vago e doce aspecto,
jovem de anos e velho de intelecto,
imagem da glória e do valor:
de pelo louro e de viva cor,
alto de pessoa e de espaçoso peito,
efinalmente em todas as obras perfeito,
menos que um pouco (ai de mim!) ímpio no amor.
E quem quiser depois me conhecer, veja
uma mulher nas vestes e no semblante
imagem da morte e dos martírios,
um albergue de fe férrea e constante,
uma que, porque chore, arda e suspire,
não faz piedoso o seu cruel amante.



X


Alto colle, gradito e graciozo,
novo Parnaso mio, novo Elicona,
ove poggiando attendo la corona,
de le fatiche mie dolce riposo;
quanto sei qui tra noi chiaro e famoso,
e quanto sei a Rodano e a Garona,
a dir in rime alto dísio mi sprona,
ma l'opra è tal, che cominciar non oso.
Anzi quanto averrà che mai ne canti,
fia pura ombra del ver, perciò che 'l vero
va di lungo il mio stil e l'altrui innanti.
Le tue frondi e 'l tuo giogo verdi e 'ntero
conservi 'l cielo, albergo degli amanti
colle gentil, dignissimo d'impero.



X


Alta colina, aprazível e graciosa,
novo Parnaso meu, novo Hélicon,
onde repousando espero a coroa,
das fadigas minhas doce repouso;
quanto és aqui entre nós claro e famoso,
e quanto o és no Ródano e na Garona,
dizê-lo em rimas alto desejo me espicaça,
mas a obra é tal, que começar não ouso.
Antes, quanto será que nunca o cante,
seja pura sombra do verso, de molde que o vero
vá mais longe que o meu estilo o o outro antes.
Os teus ornatos e o teu jugo verde e inteiro
conservo o céu, albergo dos amantes
colina gentil, digníssima de império.


colina - vide nota ao soneto III
Ródano e Garona - referência à presença de Collantino di Colalto, durante o ano de 1549, na campanha pela reconquista de Boulogne-sur-mer e no casamento de Orazio Farnese com Diana, filha ilegítima de Henrique II de França


XI


Arbor felice, aventuroso e chiaro,
onde i duo rami sono al mondo nati,
che vanno in alto, e son già tanto alzati,
quanto raro altri rami unqua s'alzaâro;
rami che vanno ai grandi Scipi a paro,
o s'altri fûr di lor mai più lodati
(ben lo sanno i miei occhi fortunati,
che per bearsi in uno d'essi mirâro),
a te, tronco, a voi, rami, sempre il cielo
piova rugiada, sì che non v'offenda
per avversa stagion caldo, né gelo.
La chioma vostra e l'ombra s'apra e stenda
verde per tutto; e d'onorato zelo
odor, fior, frutti a tutt'Italia renda.


XI

Árvore feliz, aventurosa e clara,
onde os dois ramos são para o mundo nados,
que alto vão, e são tanto já alçados,
quão raro outros ramos já se alçaram;
ramos que vão dos grandes Scipiões a par,
ou se outros foram do que eles mais louvados
(bem o sabem os meus olhos afortunados,
que por delícia num desses se miraram),
a ti, tronco, a vós, ramos, sempre o céu
chova orvalho, de modo que vos não ofenda
por adversa estação quente, nem gelo.
Que a copa vossa e a sombra se abra e estenda
verde no todo, e de honrado zelo
odor, flor, frutos a tod'Itália traga.


dois ramos - referência aos dois ramos da árvore genealógica de Collantino di Collalto: Collatino e Vinciguerra
grandes Scipiões - Referência a Públio Cornélio Scipião e ao seu filho adoptivo Públio Cornélio emiliano, famosos por feitos de letras e armas

XII


Deh, perché così tardo gli occhi apersi
nel divin, non umano amato volto,
ond'io scorgo, mirando, impresso e scolto
un mar d'alti miracoli e diversi?
Non avrei, lassa, gli occhi indarno aspersi
d'inutil pianto in questo viver stolto,
né l'ama avria, com'ha, poco né molto
di fortuna o d'amore onde dolersi.
E sarei forse de sì chiaro grido,
che, mercé de lo stil, ch'indi m'è dato,
risoneria fors'Adria oggi, e 'l suo lido.
Ond'io sol piango il mio tempo passato,
mirando altrove; e forse anche mi fido
di far in parte il foco mio lodato.


XII


Deus, porque tão tarde os olhos abri
para o divino, não humano amado vulto,
onde percebo, mirando, impresso e esculpido
um mar d'altos milagres e diversos?
Não teria, coitada, os olhos debalde húmidos
d'inútil pranto neste viver estulto,
nem a alma teria, como tem, pouco nem muito
de fortuna ou de amor de que doer-se.
E serei talvez por tão claro grito,
que, mercê do estilo, que ora me é dado,
a risota talvez da Adria de hoje, e do seu lido.
Ond'eu só choro o meu tempo passado,
olhando alhures; e talvez também me fie
em afastar o fogo meu louvado.


Adria e do seu lido - Veneza e suas possessões marítimas no Adriático

(continua)

Sophia de Mello Breyner Andresen: Ó noite, flor acesa, quem te colhe?

Ó noite, flor acesa, quem te colhe?
Sou eu que em ti me deixo anoitecer,
Ou o gesto preciso que te escolhe
Na flor dum outro ser
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in POESIA

domingo, 31 de julho de 2011

A poesia de Gaspara Stampa II

(continuação)


CXLIV

Ricorro a voi, luci beate e dive,
a voi che sète le mie fide scorte,
da poi che'l cielo, Amor, fortuna e sorte
sono ai soccorsi miei sì tardi e schive.
Se per me in voi si spera e 'n voi si vive,
come avien che per voi pur si comporte
a star lunge da me quest'ore corte,
che 'l mio ben la pietà vostra prescrive?
Deh non state oggimai da me più lunge!
Fate che questo breve spazio sia
concesso a me dávervi sempre presso;
ché l'ardente disio tanto mi punge,
che certo finirá la vita mia,
se non m'è 'l vagheggiarvi ognor concesso.

CXLIV

Recorro a vós, luzes beatas e divas,
a vós que soides as minhas fidas reservas
,
desde que céu, Amor, fortuna e sorte
são em meu socorro tão tardas e esquivas.
Se para mim em vós se espera e em vós se vive,
como pode suceder que vós suporteis
estar longe de mim durante estas horas curtas,
que o meu bem a piedade vossa prescreve?
Deus, não estaide nunca mais de mim longe!
Fazei com que este breve espaço seja
concedido a mim de ter-vos sempre junto;
que o ardende desejo a tanto me obriga,
que certo finirá a vida minha,
se não me for o contemplar-vos sempre concedido.


(continua)

sábado, 30 de julho de 2011

A poesia de Gaspara Stampa I


Gaspara Stampa (Pádua, 1523 - Veneza, 1554) foi uma poetisa italiana. A sua poesia, fortemente marcada pelo seu tempo, apresenta uma clara influência petrarquista. Foi uma das primeiras vozes femininas da poesia profana.
Procurando na PORBASE ,não encontrei nenhuma edição das Rime e muito menos traduções, pelo que julgo ser a presente uma primeira tradução para língua portuguesa. Sendo uma das vozes femininas que mais me agradam é provável que a esta se sucedam outras...


I

Voi ch'ascoltate in queste meste rime,
in questi mesti, in questi oscuri accenti
il suon degli amorosi miei lamenti
e delle pene mie tra l'altre prime,
ove fia chi valor apprezzi e stime,
gloria, non che perdon, de' miei lamenti
spero trovar fra le ben nate genti,
poi che la lor cagione è si sublime.
E spero ancor che debba dir qualcuna:
-- Felicissima lei, da che sostenne
per sì chiara cagion danno sì chiaro!
Deh, perché tant'amor, tanta fortuna
per sì nobil signor a me non venne,
ch'anch'io n'andrei con tanta donna a paro?



I

Vós que escutais nestas suaves rimas,
nestes suaves, nestes obscuros acentos,
o som dos amorosos meus lamentos
e das penas minhas entr'as outras primas,
onde haja quem valor aprecie e estime,
glória, não o perdão, dos meus lamentos
espero achar entre as bem nascidas gentes,
pois que a sua causa é tão sublime.
E espero ainda que deva dizer alguma:
-- Felicíssima sedes, pois que suportas
por tão clara causa dano tão claro!
Deus, porquê tant'amor, tanta fortuna,
por tão nobre senhor a mim não vem,
que também eu não iria com tanta mulher a par?

(continua)

José Duro: Em Busca


Ponho os olhos em mim, como se olhasse um estranho,

E choro de me ver tão outro, tão mudado…

Sem desvendar a causa, o íntimo cuidado

Que sofro do meu mal — o mal de que provenho.


Já não sou aquele Eu do tempo que é passado,

Pastor das ilusões perdi o meu rebanho,

Não sei do meu amor, saúde não na tenho,

E a vida sem saúde é um sofrer dobrado.


A minh’alma rasgou-ma o trágico Desgosto

Nas silvas do abandono, à hora do sol-posto,

Quando o azul começa a diluir-se em astros…


E à beira do caminho, até lá muito longe,

Como um mendigo só, como um sombrio monge,

Anda o meu coração em busca dos seus rastros…

A poesia de Liutprando de Cremona - II


Nubibus omnipotens Heloim cum condere Phoebi
lumina chrisocomi venerandus coeperit atris
vertice cumque polus summo clangore remugit
fulgura crebra volant throno demissa Tonantis
ignea: mox trepidant qui nigrum in candida vertunt
conscia tum metuunt scelerum sulcare suorum
pectora Vulcano pariter ruitura superno
haud secus e vacuis volitant concussa pharetris
spicula scinduntur validae quis terga loricae.
Concutit ipsa ruens segetes cum grando superba
fit sonitus clangorque simul per tecta sonorus
sic galeae strictis reboant tunc ensibus ictae
corpora sicque cadunt mutuis confossa sagittis.

Quando o omnipotente e venerando Elói a ocultar começa
entre negras núvens os raios do dourado Febo
e o céu do alto ruge de intenso fragor
lançados do trono do Tonante voam bastos raios
de fogo: logo tremem os que o negro em alvo mutam;
temem então que firam as almas cônscias
dos próprios erros, pares a Vulcano que do alto fere:
ou não voltejam de já vazias aljavas lançados
dardos, capazes do dorso da válida couraça quebrar.
Quando do alto o granizo as colheitas fustiga,
sonoro e igual fragor nos tectos soa:
assim de desembainhadas espadas os elmos batidos então ressoam
assím os corpos tombam das mútuas flechas perfurados.

Trata-se de uma descrição da batalha de Augusta, que decorreu em Junho de 910 no vale do Lech, e que opôs Ludovico IV, A Criança, às tropas magiares e que se concluiu com a derrota do primeiro.