sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Poemas de Eucanãa Ferraz



MORTE NO MAR

a T. S. Elliot

Lembro do rapaz que vi morrer na praia.
Os olhos abertos
- uma luz tão fria -
conchas espantadas que eram.
As mãos nada diziam de
anêmonas e navios.
Eu era um menino e
o azul verde da água.
Alto e belo, o afogado,
um capitão.

CONTO

para Eugénio de Andrade

Ainda não era menino
ou menina.
Tudo o que sabia
era o nome das cores.
Tudo o que sentia era
sede e fome.
Mas houve o verão em que
os barcos não regressaram. Foi quando,
apontando a linha do horizonte, a mãe
disse ao seu ouvido:
- és um homem.

MAR MÍNIMO

Grandes são os marinheiros e os poetas
que fazem caber em seus versos
a glória de horizontes
inventados ou vividos e que,
em grandíloquo e corrente estilo,
erguem cidades magníficas,
domam línguas, contam-nos pélagos e obeliscos.
Mas que fazer da escama
que sobrasse após os mares,
agarrada à roupa mais que
Veneza ou Viena à memória?
Escutai: é nessa minúscula opalina
que muitos sabem o poema
- mais duas ou três palavras
e o martelo certo de fazê-lo.
Rotas magníficas, não mais,
nem quantas as maravilhas
(e cessem com elas os iluminados que contam
de terras por si mesmas lavradias).
O mar pode ser isto: o ar
dentro da concha. Dentro:
o sargaço, o barco, o sargo,
a enseada. Onde poderá ser mais belo
e largo? A onda bravia
sobre um grão de mostarda.


in Martelo

LUGAREJO
O trem muge o longe.
Os vagões levam toneladas de horas
e astros enferrujados.

Bicho de ferro,
atravessando a facão o lombo do dia,
enchendo de metálica melodia
a vida homens dali.



18.05.1961

Nasci num lugar pobre,
onde o hospital era longe,
onde era longe a estrada
e os anjos não conheciam.

Nasci mês de maio,
azul de tardes macias,
de pai José, mãe Maria.

Batizaram-me: Terra Prometida.
Terra pobre, onde a felicidade
passa longe, mas daqui eu a vejo
e todo o meu corpo brilha.



GINÁSIO

Dias de muito sol e biscoitos de vento,
Colubiazol e aparelho nos dentes,
amigdalite e bagunça nos ônibus.



LIÇÃO DE CITOLOGIA

A célula
é a concha
dentro da pérola.



INICIAÇÃO

Conheço o primeiro livro de poemas:
Eu,
de Augusto dos Anjos.

Meu pai o tem
entre tratados de odontologia,
sem capa, velho,
enferrujado.

Livro misteriosíssimo,
no qual a morte é o superlativo
síntese de tudo,
absoluta como minha preguiça
de ir ao dicionário decifrar vocábulos.



PASSEIO

Na entrada do cinema
o drops pode ser misto ou de hortelã.
O misto tem gosto de frutas,
o de hortelã de hortelã.

As pessoas são muitas pessoas.

Dentro do cinema,
quanto tudo é escuro,
são todos anônimos
e mesmo em inúmeros,
assim como são,
ficam uma só pessoa,
nos escuro,
como se não fosse ninguém.



QUANDO EU MORRER

Pai,
quando eu morrer,
ficarei rosa
como uma menina
(você não deve ralhar
ou querer que eu minta
porque tudo será exato
sem mesmo carecer de ensaio).

Quando eu morrer sou tranqüilo
como um príncipe
que beijasse a boca do nada
(você vai achar bonito
esse quadro de tintas longínquas).

Pensarão que sou uma menina,
um barco,
um pombo.

Todo o meu doce virá à tona.

Veja pai,
sou um mineral,
intacto e sem passado.

ASSIM

Da solidão nasce o silêncio.

Posso vê-lo
entre nós.

Estáticos,
estamos assim
desde que, calados, assistimos dormir
o últmo pedido.

Canções e braços
mudaram-se ao país das pedras
e a tua presença é uma casa
sem portas.

Silêncio.

As águas
não chegam até à praia.

in Livro Primeiro

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